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"Para os leitores de sua própria língua, Saramago é antes de tudo um estilo", atesta a crítica literária Leyla Perrone-Moisés no texto abaixo. Hoje (16), dia em que celebramos os 100 anos de nascimento de José Saramago (1922-2010), publicamos este trecho do ensaio As artemages de Saramago, bastante introdutório e sintético sobre o autor luso - o único escritor em língua portuguesa a ganhar um Nobel de Literatura. 

Perrone-Moisés lembra que as histórias que Saramago narra "não valem por elas mesmas, mas por seu sentido alegórico" e que o caráter oral de sua escrita o aproxima de outro grande inventor, João Guimarães Rosa (1908-1967). Talvez venha daí, também, a escolha da ensaísta pelo termo "artemages", forma usada pelos habitantes do Alentejo para falar "artes mágicas", para comentar o autor em questão.

O ensaio integra obra de mesmo nome: o livro As artemages de Saramago, recentemente publicado pela Companhia das Letras, reúne textos críticos de Leyla Perrone-Moisés que funcionam como um guia para adentrar os trabalhos do escritor português. 

 

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AS ARTEMAGES DE SARAMAGO

O prêmio Nobel concedido a José Saramago em 1998 foi recebido, em Portugal e nos países de língua portuguesa, como um milagre. Na verdade, além de ser o primeiro escritor da língua a receber a láurea, ele realizou proeza raríssima na literatura moderna: ser respeitado pela crítica especializada, ser objeto de pesquisa e ensino em universidades de vários países e ter imediatamente vasto público leitor, nos países de sua língua e em todos aqueles em que foi traduzido. Isto, sim, é um milagre. Um milagre para o qual, se formos ateus como ele, buscaremos uma explicação racional; entretanto, se também entendermos de arte como ele, saberemos de antemão que a explicação nunca será completa. O êxito de uma obra artística depende de uma combinação de fatores que nunca pode ser totalmente explicada. Em Manual de pintura e caligrafia (p. 127), Saramago lembrava que, no Alentejo, o povo usava a palavra “artemages” para designar as artes mágicas. Tentemos, então, recapitular alguns aspectos das “artemages” desse nobelizado.

Para os leitores de sua própria língua, Saramago é antes de tudo um estilo. Em sua escrita, a frase portuguesa adquire ritmo particular, obtido por simetrias, incisas, retomadas e inversões, num balanço harmonioso que conduz a um acabamento perfeito. É como se a língua chegasse aí a uma beleza e a uma funcionalidade plenas. Poderíamos dizer, acerca das melhores páginas de Saramago, o que Pessoa disse de Vieira: “Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive […] aquela grande certeza sinfônica” (Bernardo Soares, Livro do desassossego).

O aspecto ao mesmo tempo artificioso e natural do português de Saramago resulta de uma engenhosa aliança do erudito com o popular, do livresco com a oralidade. Sua prosa incorpora uma rica tradição literária, de Fernão Lopes a Vieira, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Pessoa, aí presentes num intertexto que não é apenas alusivo ou citacional, mas que age num nível mais difícil de captar, o da arquitetura sintática, da prosódia, das técnicas narrativas e descritivas. A essa tradição, Saramago trouxe sua nota pessoal que, na superfície do texto, consiste na supressão da maior parte dos sinais convencionais de pontuação, marcadores de diálogos, pausas ou entoação. Esse modo de escrever, segundo ele, lhe ocorreu de repente após a vigésima página de Levantado do chão, e tornou-se desde então sua marca registrada.

A supressão total ou parcial de pontuação, muito praticada desde o início do século pelos prosadores de vanguarda (em Portugal por Almada Negreiros), não tem, em Saramago, um intuito puramente experimental, mas decorre do caráter oral de sua prosa, mais proferida do que escrita, e proferida com larguíssimo fôlego. Essa prática só funciona porque Saramago tem domínio absoluto da lógica discursiva, do ritmo da frase e da respiração do falante, de modo que seu leitor jamais se extravia nos segmentos do discurso ou confunde os interlocutores de um diálogo.

A oralidade de Saramago é a do contador de histórias, que embala o ouvinte com sua voz, mas sobretudo o mantém suspenso a uma fabulação. Essa capacidade de fabular e de manter o interesse do receptor é uma qualidade que independe da língua, e é ela que tem garantido o êxito do escritor junto aos leitores das inúmeras traduções de suas obras. Não por acaso Levantado do chão, livro inaugural de sua grande fase romanesca, foi precedido de uma viagem ao Alentejo, onde ele se reabasteceu das histórias ouvidas desde a infância. Numa entrevista, ele declarou: “O leitor dos meus livros deverá ler como se estivesse a ouvir dentro de sua cabeça uma voz dizendo o que está escrito” (Folha de S.Paulo, 1995). O paralelo com Guimarães Rosa, nesse ponto, é inevitável. As obras de ambos alcançam plena comunicabilidade na leitura em voz alta, quando reatam com suas raízes orais.

São várias as marcas da oralidade nos romances de Saramago. O narrador (que ele não gostava de distinguir do escritor) é uma presença constante em seus textos, com intervenções na primeira pessoa do singular, quando comenta, ou do plural, quando inclui o próprio leitor, a cujas possíveis dúvidas ou objeções ele está sempre atento, como se de uma conversa se tratasse. A ausência de travessão ou aspas nos diálogos dá às falas o caráter teatral típico da literatura oral, conferindo às personagens uma presença mais forte na narrativa e uma aproximação maior do leitor. Em suas intervenções, o narrador expõe algumas vezes suas próprias dúvidas acerca da continuação da história, como se dissesse ao ouvinte: e agora? e depois? São esses alguns dos traços marcantes de uma longa tradição ibérica de narradores orais, presentes desde a Idade Média tanto nas cortes e igrejas como nas feiras populares.

Embora tendo alcançado o domínio de seu estilo próprio com Levantado do chão e Memorial do convento, Saramago não cedeu à facilidade de nele se instalar definitivamente. Desde então, e de romance a romance, seu estilo se transformou. Das volutas barrocas adequadas ao tema setecentista do Memorial, ele passou a um discurso enxuto de relato policial em O ano da morte de Ricardo Reis e chegou, depois, ao milagre estilístico de O Evangelho segundo Jesus Cristo, em que reciclou com maestria o profetismo evangélico e o lirismo do Cântico dos cânticos. Em seus romances posteriores, Ensaio sobre a cegueira e principalmente Todos os nomes, sua escrita se despojou da pirotecnia barroca para alcançar um ideal clássico: a clareza luminosa e a precisão incisiva, aquela aparente simplicidade que só se conquista com muito trabalho e experiência. O escritor tem consciência dessa evolução de seu estilo, como declarou em conversa com Carlos Reis, em janeiro de 1998: “Julgo estar a assistir, nestes últimos livros, a uma espécie de ressimplificação. Hoje verifico que há em mim como que uma recusa a qualquer coisa em que me divertia, que era essa espécie de barroquismo, qualquer coisa que eu não levava, mas que de certo modo me levava a mim; e estou a assistir, nestes últimos dois livros, a uma necessidade maior de clareza”.

A evolução do estilo de Saramago é correlata à evolução de sua temática e, em decorrência desta, da escolha de gênero. As histórias por ele narradas sempre tiveram uma função de parábola, isto é, uma narração alegórica que remete a realidades e reflexões de ordem geral e superior à dos eventos narrados. Essa tendência à parábola, que em O Evangelho segundo Jesus Cristo pode explicar-se pela remissão ao próprio texto evangélico, glosado e subvertido em múltiplos microrrelatos, expandiu-se em Ensaio sobre a cegueira e Todos os nomes, que podem ser lidos como parábolas desenvolvidas, o primeiro remetendo à cegueira coletiva da humanidade atual e o segundo remetendo à busca individual de liberdade e amor num mundo burocratizado, totalitário e necrófilo.

Quem leu apenas uma ou duas obras do escritor ignora a riqueza e a variedade do conjunto, e pode formar uma opinião equivocada a seu respeito. Saramago não é um escritor analítico, um esmiuçador de ideias ou de estados de alma (embora prove, em muitos momentos, que sabe fazer isso). As histórias que ele narra não valem por elas mesmas, mas por seu sentido alegórico. E é justamente a generalização alegórica que lhe garante a recepção universal desde sempre concedida aos aedos, aos fabulistas, aos contadores de “histórias”.

O que ele busca é mais geral e concreto. Geral, como alegoria moderna, ou seja, aquela que nasce da História e a ela remete. E concreto em vários sentidos. Concreto primeiramente pela capacidade que ele tem de dar concretude aos objetos e aos seres, o que confere a seu texto um permanente apelo sensual. Concreto também porque ele sente e trabalha a palavra em sua materialidade fônica, como poeta que é: “Penso hoje que os escritores têm andado com demasiada pressa: problematizam micrometricamente sentimentos sem antes terem dado uma simples volta de dicionário às palavras” (Manual de pintura e caligrafia, p. 155).

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Sua obra se esteia num projeto ético e político, sem se tornar doutrinária e sem deixar de ter a estética como prioridade. “Dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores”, disse ele mais de uma vez. Saramago é um homem politicamente engajado, com opiniões firmes, que podemos ou não compartilhar. Mas sua obra literária não é uma obra de mensagem explícita e fechada; é sempre uma busca e uma proposta de sentido, e não uma imposição deste. Sua enunciação escapa à tentação do dogmatismo pela presença constante da ironia, do humor, da ternura, e sobretudo pela prudência de quem conhece a especificidade de sua arte. As questões que ele levanta, embora sempre convidando à reflexão sobre a realidade atual, ultrapassam essa contingência imediata; são questões que os historiadores chamariam “de longa duração”: o poder, a opressão do indivíduo na sociedade, a dignidade fundamental do ser humano, a relação com o outro, a força do sonho e da arte.

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