Você lê nestas páginas três capítulos de Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, reunião de reminiscências de um dos grandes poetas do país, Ricardo Aleixo, lançada pela editora Todavia.
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UMA CONVERSA COM ALGUÉM DE MUITO LONGE
Querida N., como está você?
Demorei mais do que imaginava a encontrar um tempo para responder com calma às suas tão bem elaboradas perguntas. Sei que você compreenderá a minha demora, porque vivemos no mesmo planeta, nesta época em que tudo rescende a medo e incertezas.
Você me pergunta sobre as línguas que fazem parte do meu repertório poético (“espanhol, língua dos ancestrais, francês, língua dos pássaros?”). O espanhol, sim, e também o francês — que leio, mas não falo nem escrevo, o mesmo valendo para o inglês, o alemão e o italiano, para ficar só nas línguas hegemônicas.
A bem da verdade, não domino nem o castelhano. Para ser absolutamente franco, mesmo o português que eu pratico tem algo de muito peculiar, de talvez excessivamente livre, como observou, na Alemanha, a poeta Barbara Köhler, com quem trabalhei, num laboratório de tradução patrocinado pelo Festival de Poesia de Berlim, em 2012. Tenho uma relação musical, digamos assim, com os idiomas. Musical e afetiva. Se gosto de um poeta, faço todo o possível para me aproximar de sua língua original: cerco-me de dicionários, procuro ouvir suas leituras em voz alta, peço ajuda a quem de fato conhece aquele idioma. Não tenho nenhuma pretensão quanto a exercer a atividade de tradutor. Digo-lhe inclusive que o meu interesse reside menos no “conteúdo” dos poemas do que no intrincado jogo que se estabelece, em qualquer língua, entre “o que” e “o como”.
Na minha concepção, poesia é sempre língua estrangeira. Nesse sentido, muito me vale o ouvido receptivo tanto às línguas dos ancestrais (que não tenho como definir com precisão quais seriam) quanto às línguas dos pássaros, dos calangos que passeiam pelo meu quintal, dos cães, dos gatos, das onças, das serpentes, das ruas, das casas, das nuvens e as das coisas todas que se espalham pelo mundo. Você me pergunta também como nasce o ritmo na minha poesia. Se vem de uma música, da lembrança de uma canção ou “das palavras mesmas”. Quer, ainda, que eu fale sobre a importância de Milton Nascimento na minha vida de poeta. Sobre o ritmo, me agrada pensar que ele está sempre “por aí”, que eu não o procuro, antes, o encontro e decido o que fazer com ele. Começo a criar algo sem saber para onde aquilo se encaminha. O ponto de partida, muitas vezes, no caso específico das performances, é uma sequência sonora, assimétrica e descontínua, que vou incorporando (literalmente, trago-a para o corpo), até que começam a surgir pequenas células, novos padrões rítmicos e timbrísticos aos quais adiciono outros elementos (gestos, evoluções corporais em diferentes velocidades, giros em torno do meu próprio eixo, quedas abruptas) ou apenas lido com eles como são, sem intenção de transformá-los. Me lembro, bem neste instante, da resposta que dei, numa entrevista de 2008, a uma pergunta do poeta e ensaísta Carlos Augusto Lima que tem alguma relação com a questão colocada por você: “Quanto ao meu processo de criação, é totalmente aberto e indisciplinado. Posso partir de um som indefinido ou de uma nota musical, de uma cor, de uma letra, uma palavra, uma fotografia. Minha meta, no mais das vezes, é criar uma obra tão aberta que eu possa fazer com que os elementos que a compõem transitem por outros códigos, traduzindo-se em novos códigos. Poucos são os casos de trabalhos meus em que não tentei, pelo menos, fazer com eles alguma outra coisa”.
A respeito de Milton Nascimento, só posso dizer que é um dos meus grandes amores na vida. De outros e outras artistas eu recebi, direta ou indiretamente, os mais diferentes estímulos para definir o meu modo pessoal de fazer arte, mas a ligação com Milton é de outra ordem. Tentei falar do fascínio que tenho por ele num poema publicado no livro Antiboi, de 2017:
Música mesmo
música
música mesmo
é milton
quem faz
só com
o som
que sai
da sua boca
ele toca
o oco
da vida
por dentro
do centro
da terra
até o breu
do céu
sem deus
que pesa
imenso
sobre nós
como se apenas
“palmilhasse
vagamente”
as estradas
deste mundo
com a voz
Para finalizar, vou ligar sua pergunta sobre dança — se no momento da performance eu penso que estou dançando — à seguinte, sobre se percebo ou não as minhas performances como rituais. Não, não penso que danço. Apenas danço. Ou não danço. Também não penso que estou cantando ou entoando um poema. Apenas canto ou entoo. Não penso em nada, a rigor, enquanto performo. Faço o que faço, como faço, e isso, que é tudo o que acontece naquele lugar e naquele momento, me projeta, sim, numa dimensão espaçotemporal ampliada, que não hesito em aproximar do rito. Não de um rito específico, ligado a esta ou aquela religião, mas de uma noção ampla e atemporal de rito — quem sabe, os de alguma cultura que ainda nem existe? Não sei.
SOBRE OS JARDINS FLUTUANTES DE MR. TAYLOR
Pouca coisa eu vi e ouvi, no âmbito da poesia em situação de performance, que me interessasse tanto quanto as estupendas realizações do músico, compositor e poeta estadunidense Cecil Taylor (1929-2018). A primeira de uma série infindável de surpresas que tive: o Taylor poeta e performer não toca, pelo menos nos trabalhos a que tive acesso, o instrumento que fez sua fama, o piano. Taylor “cantofala” (com o corpo todo, o que dá a ver sua conhecida ligação com a dança), lançando mão, a intervalos, de algum breve efeito percussivo ou de sutis alterações timbrísticas da voz com que entoa — por vezes, como um xamã — palavras ou fragmentos de versos sustentados por uma notável destreza rítmica. Seu disco Chinampas, de 1987, é daquelas obras que fascinam por situarem-se num limite bastante tênue entre gêneros artísticos. Muito do que faço no palco desde meados da década passada surgiu do minucioso estudo que fiz das pequenas joias de sensibilidade, elegância, humor, inteligência e espírito verdadeiramente livre produzidas por esse grande artista nosso contemporâneo. Em tempo: chinampas, palavra mexicana, significa “jardins flutuantes”.
CDA
Guardo na caixa o disco do velho poeta, morto há tantos anos, e penso no ato de extrema coragem que é alguém abrir-se à violência da escuta de uma leitura em voz alta. Porque, ao escutar esse sempre outro que faz do nosso espaço acústico um território ocupado, é preciso reescrever mentalmente, isto é, fazer os olhos verem o que, mesmo na suposta paz da página impressa, já tendia à fuga, à desaparição, ao apagamento de qualquer possível traço de sua presença num aqui e agora irrepetível.