UM DIA UMA ASSISTENTE SOCIAL TROUXE UM DOCUMENTÁRIO SOBRE A LUTA ANTIFRANQUISTA NA ESPANHA DOS ANOS 70 E EU ME LEMBREI DOS AMIGOS QUE CONHECI ANTIGAMENTE, ALGUNS MORTOS, OUTROS VIVOS
pra Boni y Nanda, que sobreviveram
Garrote, véi,
garrote!
Me peguei gritando
enquanto limpava o chão do estábulo
Garrote! era o que eu gritava
enquanto via
tal qual Rosa Egipcíaca
São Salvador Puig Antich
o último condenado à morte
por garrote morto
por não gostar de Franco morto
por ser anarquista um
garoto! era ainda
Garrote! o que eu gritava
quando chegaram os técnicos
carcereiros ou veterinários
sei lá quem eram
e me deram uma dose cavalar
de qualquer coisa pra me calar
mas se sou vaca não cavalo
como eles mesmos xingam e alardem:
pra que então tamanha dose?
Era ainda garrote…
o que eu baixinho mugia
enquanto pensava
babando
na fila do abate ou “apenas” abatida
que só não fariam igual comigo
porque há leis que os impedem
A pauladas ou a tiros é feio mas aceitável
ainda que espalhafatoso e às vezes até escandalize
quem mesmo assim me come:
não se pode subestimar a dissociação cognitiva dos homens
Já por garrote só não me matam por decoro
mas certamente até assim me matariam
se pudessem
NOTA DA AUTORA
O garrote vil é um artefato de tortura, utilizado também na execução de condenados à morte: o instrumento mata cruelmente, devagar, por estrangulamento e quebra do pescoço. Já no final dos 1700, o grande pintor Goya documentou as execuções por garrote, denunciando as torturas e assassinatos cometidos pela “santa” Inquisição, em geral – e demonstrando a crueldade deste método, em particular.
Mas não pense você que o garrote é coisa de um passado distante. Em 2015, passei três meses na Catalunha, entrevistando sobreviventes da Guerra Civil Espanhola e seus descendentes. Um dia, uma das entrevistadas, Maria, me contou de Salvador Puig Antich – militante antifascista catalão, que lutava contra a ditadura franquista – de quem eu nunca tinha ouvido falar. Ela me diz que ele foi o último preso político executado por garrote. “Em 1939?”, perguntei. A resposta: “Não, em 1974”.
Em 2 de março daquele ano, Salvador Puig Antich foi executado no garrote vil pelo regime franquista, depois de ser julgado por um Tribunal Militar e considerado culpado pela morte de um policial. Em 2019, voltando à Espanha para finalizar as pesquisas iniciadas em 2015, conheci Boni e Nanda, casal de anarcossindicalistas, ativos em Barcelona nos 1970, contemporâneos e companheiros de Salvador. Também eles foram presos e torturados pelo regime franquista.
Boni foi enviado para uma cadeia comum, e conseguiu organizar os assim chamados “presos sociais”, em campanhas abolicionistas e antifascistas. Nanda foi enviada para uma prisão comandada por freiras católicas (“umas nazis”, nas palavras dela) e lá também organizou motins e greves de fome. Ao contrário de Salvador, o casal felizmente sobreviveu à ditadura mas, se estão vivos, é importante dizer, não foi graças à Lei da Anistia espanhola – foi pela própria luta antifascista.
Promulgada em 1977, a lei perdoa os crimes cometidos pelos militares durante os 36 anos de ditadura do general Francisco Franco. A ferida da execução de Salvador Puig Antich está aberta em muita gente que ainda vive, como Boni e Nanda, seus contemporâneos, seus amigos e descendentes. Assim como a brasileira (de 1979), a Lei de Anistia espanhola deixa intocado um legado de terror que atravessa as gerações.
Este poema, que faz parte do meu livro inédito ASMA, foi escrito com essas dores em mente, pois elas atravessam os tempos. Mas nunca é tarde para se fazer justiça: seja pelas atrocidades cometidas na Espanha do século XX, seja pelas cometidas pela família Bolsonaro no Brasil do século XXI.