Lawrence Monsanto Ferlinghetti (1919-2021) foi um dos maiores poetas e editores norte-americanos da segunda metade do século XX. Também pintor de talento, esteve na ativa até o fim da vida. Foi autor de mais de quarenta livros (ficção, poesia, autobiografia e crítica de arte). Um parque de diversões da cabeça (1958) é um dos maiores best-sellers de poesia da história dos EUA, com mais de um milhão de exemplares vendidos. Em 1998 ele foi nomeado Poeta Laureado de San Francisco, cidade com a qual sua história se funde. Poeta político (propunha a “poesia como arte insurgente”), “poeta populista”, lírico e imagista, foi um nome fundamental na divulgação da literatura beat, publicando Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Diane di Prima, Gregory Corso, Gary Snyder e Philip Lamantia, entre outros.
A LUZ CAMBIANTE
A luz cambiante em San Francisco
não se parece com a da costa leste
nada a ver com a
luz perolada de Paris
A luz de San Francisco
é luz marinha
luz de ilha
Luz de neblina
cobrindo as colinas
boiando na noite
pela Golden Gate
até se deitar na cidade ao amanhecer
E então os alciônicos fins de manhãs [nota 1]
depois que o fog se consome
e o sol pinta as casas brancas
com a luz do mar da Grécia
com sombras claras e aguçadas
fazendo a cidade parecer
que acabou de ser pintada
Mas o vento chega às quatro horas
varrendo as colinas
E então o véu de luz do lusco-fusco
E então outra cortina
quando o novo fog noturno
flutua
E naquele vale de luz
a cidade deriva
sem âncora, no oceano
ALLEN GINSBERG MORRENDO
Allen Ginsberg está morrendo
Saiu em todos os jornais
Deu no noticiário da noite
Um grande poeta está morrendo
Mas sua voz
não morrerá jamais
Sua voz está na terra
Na Baixa Manhattan
na sua própria cama
ele está morrendo
Não há nada
que se possa fazer
Ele está morrendo a morte que todos morrem
Está morrendo a morte do poeta
Ele tem um telefone na mão
e liga pra todo mundo
de sua cama na Baixa Manhattan
No mundo todo
de madrugada
o telefone está tocando
Aqui é o Allen
diz a voz
Allen Ginsberg ligando
Quantas vezes eles já ouviram isso
ao longo dos longos e grandes anos
Ele não tem que falar Ginsberg
No mundo todo
no mundo dos poetas
só tem um Allen
Eu queria te dizer uma coisa
E ele diz o que está acontecendo
o que está por vir
sobre ele
Morte o amante das trevas
baixando nele
Sua voz viaja via satélite
sobre a Terra
sobre o Mar do Japão
onde um dia ele posou nu
tridente nas mãos
como um jovem Netuno
um jovem de barba preta
de pé numa praia de pedras
É maré alta as aves marinhas choram
Ondas quebram-se nele agora
e as aves marinhas choram
no cais de San Francisco
Faz vento forte
Cristas ferozes
Castigam o Embarcadero
Allen está no telefone
Sua voz está nas ondas
Leio poesia grega
O mar está dentro dela
Cavalos choram nela
Os cavalos de Aquiles
choram nela
aqui à beira-mar
em San Francisco
onde as ondas choram
Fazem um som sibilante
um som sibilino
Allen
elas sussurram
Allen
VOLTA E MEIA DURANTE A ETERNIDADE…
Volta e meia durante a Eternidade
pintam uns caras
e um deles
que chega bem tarde no pedaço
é tipo um carpinteiro
de um lugar super careta
tipo Galileia
e começa a gemer
e dizer que ele tá ligado
no mano que criou o céu
e a terra
e que o bamba
que aprontou essa com a gente
é o Pai dele
E além do mais
ele acrescenta
Tá tudo escrito
nuns rolos de pergaminhos
que uns capangas
mocozaram lá pras bandas do Mar Morto
há muito muito tempo
e que vocês não vão achar nem
em uma carrada de anos ou mais
ou pelo menos
por mil novecentos e quarenta e sete
anos
pra ser exato
e nem assim
ninguém bota a menor fé neles
ou em mim
falando nisso
O cara é quente
falam pra ele
E dão uma esfriada nele
Penduram o cara numa Árvore pra dar uma relaxada
E depois disso todo mundo
começa a fazer modelos em T
dessa Árvore
com Ele pregado nela
e a viver cantarolando o nome Dele
pedindo chega mais desce daí
faz uma gig
com a nossa banda
como se ele fosse o Tal
o que tem que quebrar tudo
senão não rola
Só que ele não desce nem a pau
da Sua Árvore
Fica ali pendurado na Sua
Árvore
parecendo nas últimas com as Pedradas
Tranquilão
e Também
segundo as últimas
notícias internacionais
como sempre de fontes nada confiáveis
morTinho da silva [nota 2]
VEM DORMIR COMIGO E SER O MEU AMOR [nota 3]
Vem dormir comigo e ser o meu amor
Amor deita comigo
Durma comigo
Sob o cipreste
na relva suave
Onde o vento adormece
Onde o vento falece
Enquanto a noite passe
Vem dormir comigo
A noite toda comigo
E se canse de tanto me beijar
E se canse de fazer amor
E que nossos eus se manifestem
A noite toda sob o cipreste
Sem fazer amor
NOTAS
[nota 1]. “Alciônicos”, ou seja, “calmos”. Vem de Halcyon (Alcíone), filha do deus grego dos ventos.
[nota 2]. “Modelos em T”: o poeta usa “Árvore” (Tree) para remeter à cruz onde Jesus morreu; “parecendo nas últimas com as Pedradas”: com Petered out (“perder força gradualmente”), cria-se um jogo com Peter (“Pedro”), que negou conhecer Cristo.
[nota 3]. Inspirado em O pastor apaixonado à sua amada, de Christopher Marlowe (1564-1593).