Abaixo você lê trecho do ensaio Cidades e cosmofobia, que integra o livro A terra dá, a terra quer (Ubu Editora e PISEAGRAMA), de Antônio Bispo dos Santos (foto). Também conhecido como Nêgo Bispo, o autor é lavrador, poeta, escritor e ativista político conhecido dos movimentos de luta pela terra. Também escreveu Colonização, quilombos: Modos e significados, entre outras obras. Mora no Quilombo Saco do Curtume, no Piauí.
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CIDADES E COSMOFOBIA
O que é a cidade? É o contrário de mata. O contrário de natureza. A cidade é um território artificializado, humanizado. A cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Os humanos excluíram todas as possibilidades de outras vidas na cidade. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Se existe, é graças à força do orgânico, não porque os humanos queiram.
Fui criado numa casa de chão batido, onde andava descalço. As galinhas e os outros animais conviviam conosco dentro de casa. Quando uma galinha estercava na casa de chão batido, a parte úmida do esterco, das fezes da galinha, era absorvida pela terra. Tirávamos a parte sólida e jogávamos no quintal para servir de adubo. Para o povo da cidade, isso é um horror. Pisar as fezes da galinha? Impossível! Tem que ter uma cerâmica bem lisinha para poder enxergar qualquer outra vida, qualquer outro vivente que estiver ali, para poder desinfetar e matar qualquer microrganismo. Matar até o que não se vê. Para andar descalço, é preciso desinfetar o chão: a cerâmica foi criada porque os humanos não podem pisar a terra. Os calçados foram criados porque os humanos não podem pisar a terra. Porque a terra é o anseio original.
A humanidade se desconectou da natureza exatamente por ter cometido o pecado original. Seu castigo foi se afastar da natureza. Por isso Adão foi expulso do Jardim do Éden e o humanismo passou a ser um sistema, um reino desconectado do reino animal. Dentro do reino vegetal, todos os vegetais cabem, dentro do reino mineral, todos os minerais cabem. Mas dentro do reino animal não cabem os humanos. Os humanos não se sentem como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia.
A cosmofobia é o medo, é uma doença que não tem cura, apenas imunidade. E qual é a imunização que nos protege da cosmofobia? A contracolonização. Ou seja, o politeísmo, porque a cosmofobia é germinada dentro do monoteísmo. Se deixamos o monoteísmo e adentramos o politeísmo, nos imunizamos. No mundo politeísta não existe pecado original, ninguém foi expulso do Jardim do Éden, ninguém tem memória de terror. Os deuses e as deusas são muitos e não temos medo de falar com eles. No mundo politeísta, ninguém disputa um deus, porque há muitos deuses e muitas deusas – tem para todo mundo. Como no mundo monoteísta só há um deus, é uma disputa permanente. O povo de Israel contra o povo da Palestina, por exemplo. Estão se matando na disputa por um deus. No nosso caso, não é preciso: temos Exu, Tranca Rua, Pomba Gira, Maria Padilha… Se não estamos com um, estamos com outro.
Quando, aos dezoito anos, saí para conhecer uma cidade, percebi que existia outro mundo para além daquele onde nasci e me criei. A cidade era outro mundo. Nas cidades, as pessoas não sabiam fazer suas próprias casas, como sabíamos fazer no lugar de onde viemos. Não sabiam e ficavam dependendo de outros que as fizessem por elas. Onde nasci e fui criado, todo mundo tinha casa. Só não tinha casa quem não queria e morava com os pais, com os parentes ou com os amigos. Ou quem andava perambulando, quem achava por bem não ter casa porque era muito trabalhoso cuidar. Mas na cidade não era assim. As pessoas dependiam de casas que não sabiam fazer. Onde nasci e fui criado, desde criança, íamos observando, achávamos um lugar bonito, criávamos uma relação, uma comunicação com o lugar. E marcávamos: “Vou fazer a minha casa aqui”. Eu não precisava pagar para fazer a minha casa. Pelo contrário, no dia de fazer a casa, havia um grande mutirão, vinha todo mundo! Era uma festa, e fazíamos uma casa muito rapidamente.
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Fiquei na cidade grande por cerca de cinco anos, até chegar o momento em que compreendi que ali não era o meu lugar. Não consegui viver na cidade grande e retornei à roça, para viver nas comunidades onde estou até hoje. A cidade não me cabe. Enquanto a sociedade é feita por posseiros, as nossas comunidades são feitas por pessoas. Na cidade, as pessoas tinham medo de gente. Nas comunidades, ninguém tinha medo de gente, vivíamos tranquilos. Nas comunidades, não acontecia roubo ou assaltos. Se uma pessoa passava na minha roça e pegava um fruto para comer, eu ficava feliz, era motivo de reconhecimento, como se eu tivesse recebido um troféu.
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Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro. Quando a arte vira mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada. O teatro é fazer as coisas de brincadeira, enquanto a brincadeira na nossa comunidade é a brincadeira de fazer as coisas de fato. Quando a gente brinca de fazer o Reisado, a gente faz o Reisado. Quando a gente brinca de fazer a roça, a gente cresce aprendendo a fazer a roça, a gente brinca de fazer a roça até fazer a roça de verdade. A gente brinca de fazer e faz as coisas, enquanto o povo do teatro brinca de não fazer, ou melhor, faz as coisas de brincadeira e não faz as coisas de verdade.
O teatro, assim como qualquer outro tipo de arte que é mercantilizada, bloqueia a conversa das almas, porque a arte é a conversa das almas, a arte alimenta a vida, ela não deve ser mercadoria. […]
A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada. A cultura é o contrário. Nós não temos cultura, nós temos modos – modos de ver, de sentir, de fazer as coisas, modos de vida. E os modos podem ser modificados. Quando a gira está rolando num terreiro e alguém puxa um ponto, todo mundo canta junto. Colocamos uma toada, compartilhamos essa toada e cada um vai com a letra. É assim que fazemos. Dentro da cultura, é preciso se submeter às notas. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizada, colonial. Os colonialistas dizem que não temos cultura quando não nos comportamos do jeito deles. Quem não sabe tocar piano ou não sabe o que é música erudita, quem nunca frequentou um teatro, quem não frequenta o cinema, para eles, não tem cultura. Para nós, quem não sabe dançar e cantar no batuque, quem não sabe fazer uma comida, quem não se emociona com a cantiga de um pássaro não tem um modo agradável de viver.
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Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos. Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Não somos humanistas, os humanistas são as pessoas que transformam a natureza em dinheiro, em carro do ano. Todos somos cosmos, menos os humanos. Eu não sou humano, sou quilombola. Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. Os humanos são os eurocristãos monoteístas. Eles têm medo do cosmos. A cosmofobia é a grande doença da humanidade.