Como eu faria.
Volta o Gluck, mas dessa vez subjugado não mais pelo funk que já esqueci, mas pelos jingles do Repórter Esso, da Discoteca do Chacrinha. Afinal, é década de 1950. Os sons vêm trombeteados através de televisões indefinidas, pelos apartamentos de primeiro andar e as ainda existentes casas de janelas abertas.
Um piano tortura escalas em si bemol, eu gostaria. Porque minha irmã dançava ao som de um piano e porque o trânsito à minha frente fica mais pesado a cada minuto. Alguém conversa perto de mim e gargalhadas marcam, em decibéis, a escalada de um esforço para se divertir. Quem sou eu para julgar. Me esforço em outra rua, a do sol.
Rose telefona antes. É uma quinta-feira e ela sabe que é o dia em que Gunther chega mais cedo do trabalho. Está sozinho. Ingrid, a mulher de Gunther, tem horas extras de secretária executiva taquígrafa estenógrafa poliglota de redação própria cem toques por minuto. Eficiências são sempre um pouco aterrorizantes, gosto que aconteçam longe.
Rose telefona antes só para ter certeza. Ele responde:
“Alô?”
“Gunther?! Ué, ih, liguei errado. Mas você em casa a essa hora, faliu? Ah, é verdade, quinta-feira.”
E foi até bom porque ela estava pensando em passar lá para deixar a receita, pegar o telefone, devolver o paninho, escrever o bilhete, tirar a medida.
Ou então nem telefona, vai direto.
Eles têm a chave uns dos outros.
Não falam da guerra, da Alemanha, nunca falam, os que lá estavam e sobreviveram, os que de lá saíram antes, igual, os últimos até piores no seu silêncio, eles nunca falam da guerra.
Mas falam de outro jeito. Têm a chave, uns dos outros. Para qualquer eventualidade, se dizem, em um desviar de olhos para que a palavra eventualidade não precise ser redefinida, definida que está para sempre.
Está decidido, então, Rose não telefona. Vai direto.
Pega o pote, o pano, o papel. E vai, os olhos fechados pelo sol. Toca a campainha, mimetizando educação. Toca a campainha, chave na mão, pro forma, como quem toca a campainha em casa vazia, dos outros, antes de meter a chave na porta, só por educação, embora saiba que lá não há quem possa atender.
Sabe que Gunther vai atender, e espera, a chave na mão.
Quando ouve passos, põe a chave na fechadura para fingir melhor a surpresa. Que sente. Pois ela está lá, na porta, Gunther na sua frente, e ela se surpreende em sentir a surpresa, Gunther na sua frente, a surpresa de ir em frente.
“Ué, você em casa a essa hora, faliu? Ah, é verdade, quinta-feira.”
Está lá por causa da receita, do livro, da medida. Devolver o pote.
“Entra.”
Pode ter sido ao contrário.
Arno, o marido de Rose, passa as tardes trancado na oficina. É muito metódico. Almoça, deita por menos de uma hora e vai para a oficina, de onde sai apenas às quatro horas para tomar um café e dar uma volta. Rose, já faz tempo, toma sol nua no sofá da sala mesmo com ele em casa. Ele não sabe que ela toma sol nua, mas ela não se importa se ele sabe ou não.
Apenas prefere que ele não esteja por perto quando se deita, a perna levantada, no sofá. É muito improvável mas não impossível que ele se sinta na obrigação de fazer o teatro do interesse sexual e as duas coisas, o interesse sexual e o teatro, qualquer teatro, igualmente mal-vindas.
Bem.
Arno está na oficina, Rose já se deitou no sofá, cansou, o calor está excessivo, ela não se acostuma com o clima. Senta em outro lugar da sala de onde observa tudo o que gostaria de jogar fora: móveis, lustre, almofadas, ventilador, o cheiro de comida que vem da cozinha, a vista da janela, a janela.
Tocam a campainha.
Rose não se mexe. Não quer atender. Não quer dizer: um momento, já abro. E depois: sim, não, como vai.
Fica imóvel onde está, e Gunther abre a porta com sua chave.
Neste momento já aconteceram as brincadeiras dos sábados de bridge.
Ele abre, vê Rose nua sentada no meio da sala e nem um músculo dele ensaia um recuo. Da sua boca não sai nem o começo de um oh, desculpe.
Abre a porta, Rose também não se mexe.
Entra. E agora diminui ao máximo os pequenos ruídos naturais, os da chave, os de seus passos. Pega Rose pela mão. Vão até o banheiro. Trepam em dois minutos, ela encostada na pia, ele sem tirar a roupa. Depois, ele abre a porta do banheiro com cuidado. Sai. Torna a fechar. Quando Rose sai do banheiro, a casa está silenciosa e vazia. Ela se veste devagar.
A campainha torna a tocar, ela vai atender. É Gunther, apenas um meio-sorriso pra diferenciar. “Arno está?”
Neste momento Arno abre a porta da oficina.
“Ah, achei que era você. Você que tocou a campainha ainda há pouco?”
Um pequeno silêncio.
“Foi. Desci, o porteiro falou que você estava, tornei a subir.”
Rose emenda, rápida, estava no banheiro, não deu tempo de atender ao primeiro toque.
Eles têm a chave uns dos outros
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