O quarto era um útero, escuridão e aconchego. Às vezes eu dormia pesado, noutras latejava naquele estado de quase sono, quase despertar. Então os passos sobre as minhas costas. A pele afundando nas pisadas vigorosas, a pressão tocando o osso, a ponto de doer. Depois leves toques, quase imperceptíveis. Jurupoca dos Bichos, assim minha mãe a chamava.
Jurupoca, você não é um elefante, ela advertia, e o caminhar pesado dava lugar ao rastejo. Você também não é uma cobra.
A Jurupoca saltava como sapo, tinha a agilidade de um gato, a diligência das formigas, a lerdeza de uma tartaruga. Bastava minha mãe alertá-la, que assumia nova forma. Forma é modo de dizer. Eu nunca me virei para flagrar seu corpo.
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O corpo da minha mãe, sim. Gordo, muito gordo. Obeso, diria um médico especialista. As carnes escapavam da camiseta, faziam dobras no abdômen, duas, três, quatro. Eu achava macia a pele da minha mãe.
Sou 15 anos mais nova que a Sarinha, 12 a menos que a Célia. Sempre achei engraçado a mais velha ter apelido no diminutivo. Talvez coubesse melhor a mim, jamais tratada de Lucinha. Quando nasci, a Sara já era Sarinha.
Na Célia, apelido nunca grudou. Não caía na pilha, cagava se alguém tentava assentar um termo jocoso. Depois que se terminou o Secretariado Executivo, ficou meio marrenta, exige o nome composto: Célia Maria.
A Sarinha não se formou, vive até com hoje com a nossa mãe. Quando as pessoas lhe perguntam se está certo ter largado três faculdades, evoca o sagrado direito ao silêncio. Ela assumiu a tarefa de cuidar da dona Arlete, quem poderia fazer isso com trabalho formal, compromisso de horário, essas merdas?
Gente tipo eu, que atende das oito às oito, parando só pro almoço.
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— A senhora cuida de caso de síndrome do pânico?
— Cuido sim.
— Ah, que bom. Mas tem um problema. Eu não saio de casa.
— A gente pode fazer as primeiras consultas online, depois vê se passa pro presencial.
— E quanto custa a sessão?
— Olha, o valor padrão é 200. Mas cada caso é um caso. Importante é a gente fazer.
— Duzentos fica pesado.
— A gente pode conversar e chegar num valor viável.
— Tá certo. Vou pensar aqui e ligo de novo amanhã.
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A Sarinha acha palhaçada esse negócio de terapia. A Célia nunca criticou e me disse que está pensando em começar. A gente se reuniu sábado na casa da minha mãe para cantar parabéns.
Fazia tempo que nós quatro não nos encontrávamos, muito tempo mesmo. Mas 90 anos não são 90 dias. A Célia levou a Alice e o Theo, meus sobrinhos. Eles se dispuseram a ajudar a pôr os brigadeiros nas forminhas, a encher os balões. Depois foram brincar com o tablet.
— Como tá no consultório? Muito cliente?
— É paciente, Sarinha.
— Isso, paciente.
— Até que não posso reclamar, depois da pandemia muita gente procurou ajuda.
— Aí acaba ficando dependente.
— Não é assim que funciona.
Célia notou que a conversa ia dar nó.
— Ei, bora agilizar que a mamãe dorme cedo.
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Era bom acordar com a Jurupoca dos Bichos. Em vez do susto da súbita claridade, um remanso no movimento de abrir os olhos. Eu reconhecia a caminhada sobre minhas costas, fosse delicada ou feroz, e esse passeio tão familiar me apaziguava com o início da manhã.
Quantas vezes me peguei imaginando se a Jurupoca tinha pelos ou patas ou rabo. Talvez tudo junto, talvez nada disso. De canguru a coelho, de coelho a galinha. Bastava o comando da minha mãe.
A Jurupoca nunca apareceu após um cochilo de almoço farto, uma pestana de fim de tarde. Só mesmo ao raiar do dia. Não sei onde se refugiava ao sair do meu quarto, se tinha uma casa, uma toca, um esconderijo. Minha mãe tampouco falava nada, limitava-se às reprimendas. A Jurupoca só se definia pela negação. Canguru, girafa, coelho, galinha, urso, cavalo, abelha. Jurupoca, você não é.
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— Mamãe, a senhora não foi pegar a Alice?
— Pegar onde?
— Na escola. Hoje é terça.
— É?
— Sim, terça tenho aula, é você quem pega, lembra?
— Ah, Célia, me desculpa. Me enrolei com os dias.
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A mamãe e a Sarinha ainda moram no apartamento em que fomos criadas. Meu pai comprou com financiamento da Caixa Econômica, 30 anos pagando prestação, e a casa virou um troféu familiar. Depois da morte dele, nós insistimos para ela vender, ir para um lugar menor, que desse menos trabalho de limpeza, manutenção, essas coisas. Imagina se vou sair daqui, a mamãe dizia, e encerrava o assunto.
Agora não é muito de falar. Passa a maior parte do dia sentada na poltrona da sala, vendo reprises do canal Viva.
— Olha seus netos aí, dona Arlete. Fala com a vovó, Alice. Você também, Theo.
Os dois deram beijos secos na bochecha da mamãe, que mantinha os olhos plantados na TV.
— Viu como eles estão grandes, vovó? — a Célia perguntou.
— O que essas crianças estão fazendo aqui?
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A Jurupoca foi embora junto com minha infância. Meu pai fez uma reforma no apartamento, derrubou paredes, trocou o piso de tacos por porcelanato. Ganhei cama de adulto e um armário novo, com portas de correr.
Na creche, meu turno era à tarde, mas o esquema também mudou. As aulas na escola começavam às oito. Para chegar na hora, precisava acordava às sete. Passei a ter bronca de acordar cedo, mas qual o jeito? Odiava a campainha estridente do despertador.
E não tinha jogo. Eu era a única adolescente da casa, o que significa que todo mundo mandava em mim.
Foram muitos anos nesse modelo, até que chegou a hora do vestibular. Prestei para Psicologia e mamãe ficou feliz.
— Vê se não vai ficar batendo cabeça em faculdade que nem sua irmã.
Ela e Sarinha sempre viveram às turras. Com a Célia, o papo era outro. Casamento promissor, de véu e grinalda, dois filhos em sequência, o marido executivo da Coca-Cola. Falam que Coca-Cola faz mal, mas me deu um homem e um emprego, a Célia gosta de repetir. Sobrava para a Sarinha.
— Vai viver debaixo da minha saia até quando? Sua irmã se arrumou faz tempo, até a caçula já se ajeitou. Mora sozinha, trabalha, se vira.
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— Que dia é hoje, dona Arlete?
— Peraí. Eu sei.
— Dia da semana…
— Só tô confusa, mas eu sei, sim.
— Segunda? Terça? Quarta?
— Quarta?
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Era uma sexta-feira de outubro. Faz quatro anos.
Sob protesto, dona Arlete estava no consultório do geriatra que meu primo André, também médico, havia indicado.
— Eu não sinto nada de dor. Sempre tive boa saúde, exames perfeitos.
— Fica tranquila, só vou fazer alguns testes — disse o doutor Sérgio.
A mamãe cravou a data em que nasceu, o nome das filhas, do finado marido. Lembrou da lua de mel em São Lourenço e do endereço da loja do meu avô. Mas não sabia em que mês estávamos, em que dia, o que havia almoçado.
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Sarinha preferiu que a comemoração fosse à noitinha. Combinamos de não fazer jantar. Cada filha ficou de levar um prato de salgados, ela prepararia brigadeiros e compraria as bebidas. Depois a gente acertaria a divisão das despesas.
Nossa irmã mais velha cozinhava bem e era famosa na família por suas bolinhas de queijo, a casca crocante e sequinha, por dentro o muçarela derretido que às vezes queimava a língua.
A Júlia comprou quibes e coxinhas de galinha na Fornalha. A caixa de papelão chegou encharcada pela chuva, mas os salgados se salvaram. Eu fiz um sanduíche colorido em camadas.
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No dia da consulta ao geriatra, levamos exames antigos da minha mãe. O doutor André esmiuçou os papéis e tirou novas medidas de altura e peso. Era visível que ela havia definhado, só não tínhamos ainda os números. Cinquenta e dois quilos a menos.
A memória levou o apetite pela mão, uma marcha lenta e progressiva. Como um pintor que espalha solvente pelo quadro, em suaves pinceladas, até que a tela seja apenas neblina sobre o branco.
— O que essas crianças estão fazendo aqui? — ela repetiu.
Antes que Célia pudesse balbuciar qualquer palavra, Sarinha disse: —São seus netos A Alice está com nove e o Theo, com sete.
— Que bonitos — a mamãe respondeu, e voltou novamente a cabeça em direção à TV.
Ela já havia me chamado de Sarinha, e a Sarinha de Eleonora, que era minha avó e morreu tem 12 anos. Cada informação lhe soava inédita, mas logo a perdia. Um instante, bastava um instante, e mergulhava novamente no abismo.
Preferimos esperar o fim da novela para cantar os parabéns. Célia havia comprado 90 velas pequeninas e acabamos concordando que seria um esforço demasiado para uma senhora quase centenária soprar tantas chamas. A Sarinha resolveu o problema ao encontrar uma vela com o número nove, que tínhamos usado no aniversário da Alice.
Foi um canto ligeiro, sem é pique, é pique ou com quem será. Quando o marido da Célia tocou a campainha, a mamãe já tinha se recolhido sem saber o que festejara, e estávamos desmontando a mesa. A chuva havia se transformado em temporal, com trovoadas de estremecer as janelas. Raul nem pretendia aparecer, a Célia disse que estava enrolado com as coisas do trabalho, mas ficou preocupado com o pé-d’água e foi de carro buscar minha irmã e as crianças. Ainda me ofereceu carona, que polidamente recusei. Não vou muito com a cara dele.
— Deve estar tudo alagado — comentou a Sarinha, antes de propor que eu dormisse lá. — Você pode usar o seu antigo quarto.
Não era uma ideia de todo ruim, até porque moro em Santa Teresa, sabe-se lá se ia conseguir táxi.
Fazia alguns anos que eu não entrava naquele quarto. Virou um espaço de hóspedes para hóspede nenhum. As paredes agora são verde-água e, no armário de correr, falta uma das portas. A boca banguela expunha um amontoado de toalhas e lençóis mal dobrados.
Catei um deles, balancei para espalhar a poeira e estendi sobre a cama, a mesma cama de adulto da época da reforma. Não demorei a dormir.
Acordei quando o apito do celular rasgou por alguns segundos o silêncio que pesava sobre a casa. Era domingo, sete da manhã ainda, eu tinha esquecido de desligar o despertador. Merda.
No corredor, reparei que as portas dos quartos permaneciam fechadas. Ninguém mais havia levantado. Fui até o banheiro jogar água nos olhos e coloquei um café para passar.
O quarto da minha mãe era o último do corredor, a única suíte. Abri a porta com cuidado para não fazer barulho e a flagrei deitada de bruços, coberta por uma manta grossa. Ela suava um pouco.
Tirei a manta, fiz um carinho nos seus cabelos grisalhos e desci a mão até as costas. Primeiro corri os dedos levemente, sentindo o sulco dos ossos sob a pele finíssima e o tecido de algodão, e com o polegar e o indicador fui aumentando a intensidade, dando breves saltos de costela em costela, o cóccix, a cintura, a cervical. O corpo ainda não havia esboçado qualquer movimento, permanecia imerso na letargia, quando ouvi a voz miúda. Não, Jurupoca, você não é uma rã.
Marcelo Moutinho é carioca, autor dos livros A lua na caixa d’água (Malê), que conquistou o Prêmio Jabuti, em 2022, na categoria Crônica; A palavra ausente (Malê) e Rua de dentro (Record) entre outros. Com Ferrugem (Record), conquistou, em 2017, o Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional. Escreveu também livros infantis e prepara, para 2024, uma biografia da vedete Zaquia Jorge.