Quando todo mundo entrou, cabiam só uns cinco seis por apresentação, como eu te disse não havia lugar pra ninguém se sentar, ela chegou-se, estava de salto, eu lembro porque o sapato dela me chamava atenção, te falei já que sempre eu começo com um texto, pra falar a verdade, um texto não, um improviso, e não é o personagem quem entra, entende?, quem está lá sou eu, Ana, a atriz, não a personagem que a Ana atriz está interpretando, quer dizer, eu não curto muito essas fronteiras, assim, é um meio termo, um equilíbrio, aliás, minha pesquisa foi toda em cima disso, o espetáculo veio dessa pesquisa, assim, em cima desse meio tom, de, cara, como é você aqui ser você mesmo, dali há pouco não ser mais, entende?, então, os pés dela, dessa figura que, respondendo tua pergunta, foi a figura mais bizarra que rolou, tipo, ela chegou na apresentação lá e ela reinou, mas, assim, ela ficou na dela, quer dizer, no começo, porque não eram só os sapatos, ela estava com uma meia calça com umas listras  horizontais, uma perna assim, grande, não sou muito de olhar perna de mulher, tu me conhece,  mas aquelas pernas, aquela cor, porque tu sabe que um quarto de revelação como era aquele, o lugar já é pequeno, tudo se transforma, tipo um filtro saca?, ó, detalhe, eu não criei cenário, eu não adaptei, nada, a gente fazia a apresentação na casa do Ricardo, cara, nem te falei dele, né, então, ele topou o projeto, assim, você não tem ideia, não tem noção, o cara, tipo, acreditou na proposta desde o começo, cedeu a casa geral, falou assim, Ana, olha, quer ficar dois, três meses em temporada aqui em casa, ó, a casa é tua, só me avisa os dias das sessões, quero me organizar aqui, ó, precisar de mais alguma coisa, fala aí, então, não sei se te falei, mas a ideia surgiu, quer dizer a ideia toda da peça não, tipo o lance de também ter escolhido trabalhar com o Drummond, isso já foi depois, elaboração minha, sugeri a uns amigos, pessoal da área, uns poetas, uns caras amigos meus, qual seria o texto, enfim, tentei até improvisar umas coisas, eu mesmo escrever, minhas ideias mesmo, minha história, falei com um dramaturgista, mas eu ia te dizendo, eu tinha dormido pela primeira vez lá na casa do Ricardo, ele contou que o pai dele era fotógrafo que o estúdio do pai dele ficava dentro da casa, que, assim: era um quarto, então, o do pai dele era outra história, o pai dele tinha construído com compensado de madeira, ele, o Ricardo era pequeno, moleque mesmo, tipo uns cinco, seis anos, ele me contou de um dia que tinha dormido numa rede dentro do estúdio, o pai não era artista que nem o Ricardo não, fazia foto de três por quarto, casamento, essas coisas, então, o Ricardo dormiu, tinha uma cocada na mão, uma cocada de coco mesmo, porque não sei se aqui vocês têm, mas lá onde eu moro tem cocada de rapadura, bom, depois te explico, melhor, te mostro, a gente vai lá na feira, sabe, te levo lá, mas aí Ricardo tinha a cocada na mão, e tinha lido, lido não, folheado, uma revista dos Testemunhos de Jeová, tinha uns anjos, umas nuvens, um céu rasgado, parecia aquele povo de seriado americano,  sabe?, tudo azul e no lugar, ele caiu no sono, deve ter sonhado com alguma coisa celeste, tá vendo como eu falei, a gente começa a inventar mesmo num simples relato, numa coisa boba, ele não me falou que coisa celeste coisa nenhuma, eu que tô viajando, Ricardo mesmo disse que não lembra, mas só lembra que acordou no outro dia, ainda na rede, com a mão no chão, um monte de formiga, o pedaço de cocada todo chupado, todo sem açúcar, mas porque é que eu estou falando disso tudo?, liga não, sou assim, já viu, né, lembrei, ah, por causa da moça, então, ela foi chegando, eu nem tinha começado o primeiro movimento da peça, não sei se te disse, mas o espetáculo era de tempo invariável, em geral vinte, quinze minutos, até menos ou mais, dependia muito da vibração, da energia das pessoas, eu não saco muito disso não, mas cara, eu sei que cada pessoa tem uma aura e eu, sei lá, noto, percebo quando rola uma vibe do mal, assim, mas voltando, tinha momento, como nada era certo, eu improvisava em cima do material, então, tinha sessão, tinha dia lá, que eu chegava e dizia, quando tempo você quer que tenha a peça?, cara, eu ouvia cada resposta, não, porque depois que ficou hype, vinha neguinho que, ah, tipo, vamo lá ver a louca da mulher que faz uma peça dentro de um estúdio de fotografia, que disseram que ela uma fez um strip com a luz vermelha lá do estúdio, que antes recebe a gente depois tira umas fotos lá da gente e em seguida se tranca, fica revelando as fotos e num canto, numa pia, que, ah, tem dia que ela tira a calcinha e passa um tempão dizendo uns poemas e fica lavando uma calcinha que mais parece um pedaço de coração de tanto que ela bate, de tanto que espreme, de tanto que fica vermelho lá dentro, então, a moça isso, a moça aquilo, cara, você tá entendendo como o mundo é louco? Que, vai lá atrás, vê meu projeto, minha pesquisa, que tudo o que eu não queria na vida, que tudo o que iria atrapalhar minha investigação seria a porra da peça hypar, tu tem noção? Cara, não vou mentir, não vou dizer que foi do caralho sair em Folha, em Bravo!, em o escambau, mas meu, chegou num ponto que eu deveria deixar lista de entrada, eu sei que é meio careta, restringe e tal, tem quem não goste, eu mesmo, por exemplo, mas, pô, rolou coisa assim, ah eu queria muito saber quem era aquela figura, então, mas por que é que eu tava falando tudo isso? Ah, foi mal, tô assim hoje, liga não, tenho que parar de fumar essas merda, ah, lembrei, então, como eu ia te dizendo, naquela noite lá, saca, porque eu em cena, já é outra coisa, é outro eu, quer dizer, sou eu, mas não sou eu ainda, então, vê só a situação todo, se liga no conflito, eu lá jogando o texto do Drummond, vem aquela figura, e eu saquei a vibe dela no ato, uma coisa entrou em curto, cara, muito louco falar isso e lembrar de coisas que eu não estava nem, mas, então, ela se chegando, não lembro se ela usava calcinha, se ela tava sem calcinha, não dá pra lembrar,  ela tava com as pernas abertas pra mim, isso eu lembro, ô, mas, é muito foda, cara, esses limites, essas fronteiras, aí já entra o lance de estar na personagem, de ser você e não ser você ao mesmo tempo, mas, enfim, talvez ela nem tivesse usando, cara, pensando agora, acho que ela jogou a mó cantada em mim, sabe?, viagem, não, viagem plena, é, eu tô pensando isso exatamente agora, nossa, doidera, então, ela ficou andando, de cócoras, ela tinha uns óculos imensos, uns óculos grandes, sabe aquelas armaçõeszonas, assim, tipo Praça Roosevelt? Deus, era muito bizarro, mas caia bem na guria, eu pelo menos achava, ela foi vindo, foi vindo, uma aranhona com fome, pensei em interagir, modulei a voz, marquei a presença dela, pensei até em imitar o que ela ia fazer, mas, porra, eu não sabia o que ela ira fazer, como é que eu poderia adivinhar, se alguém chegasse pra mim e contasse, que no meio de uma peça, de uma apresentação de uma peça minha, uma moça viria lá, tipo, no meio da cena, e de boa chegar e mijar, porra porque eu não peguei a máquina e tirei uma foto lá dentro do estúdio?, sei lá, no final poderia até rolar uma exposição, aquela seria ‘a’ foto, tipo a capa do  catálogo, saca?, mas isso só quando eu conseguisse um patrocínio maior, sei lá, pensei numa de entrar em cartaz, voltar com a peça, vem esses conflitos, por um lado, eu sabia que estava indo fora de  rota, mas, mesmo assim, cara, eu queria saber até onde iriam os meus demônios, até onde eles me puxavam, porque é assim, cara, uma hora você tem que dar de beber aos teus demônios, mas, resumindo, pensei mesmo, vou mentir não, eu voltar, mas não mais lá, sabe, acho que tudo tem seu tempo e tem seu sumo, tem uma hora que, acho que você entendeu, né, mas meu plano era até outro, era ir até onde fosse mesmo aquela história, eu queria voltar em cartaz, cavar umas temporadas, Petrobras, só que em vários estúdios de uns fodões da fotografia, acho que Ricardo pode me dar uma consultoria, dizer quem seriam os figuras, eu o colocaria no projeto, renderia um catálogo, com uma foto feita em cada lugar, o Ricardo poderia fazer o texto da curadoria, por falar em texto, o catálogo bem que poderia ter os textos que eu recito, melhor, eu escrevendo à mão e escanear tudo depois, o Drummond, nossa, ele é a minha cara, mas, se bem que, melhor não, o texto tem direitos, aliás, nem falo tanto isso, tipo na divulgação pra imprensa e no material de divulgação, falo que é baseado, que é a partir, senão os caras caem em cima, que o que não falta nessa vida é malandro, ô vidinha, viu. Falando assim parece que ainda dá pra voltar no tempo e mexer em alguma coisa ou como se eu estivesse tomando uma decisão pra. Hábito, sou muito louco, muito vivo, uso muito o verbo no presente. Quando conto uma história é assim. Como se a história voltasse de novo.

SOBRE O AUTOR
Astier Basílio é jornalista, poeta e crítico de teatro. Esse é um trecho do seu primeiro romance ainda inédito.

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