O homem falou e de repente, sem que nada o anunciasse, o passado voltou a ser presente, o passado que acreditava esquecido, pretérito, de súbito diante de mim, coisa viva e atuante. Capaz de fazer ressuscitar em nós a alegria um dia existente, de refazer dores da alma, o sofrimento mais uma vez presente, ah tão presente. E, de novo, o que ficou gravado em algum lugar de nossos longes, retorna, retoma o molde antigo, e reconhecemos seu espectro, a forma como agia em nós. Reconhecemos as angústias que foram obsessão por um tempo e que gostaríamos de acreditar mortas.

Ele nos chega sorrateiro, lento. Ou se impõe de um golpe. Um cheiro do perfume de alguém amado, um trecho de canção, outrora ligado a um momento bom de vida, um certo gosto de comida na boca. Um verso, uma frase ouvida, e de pronto já não somos aquele corpo instalado no aqui e agora, prisioneiros da cronologia, mas habitantes de um outro espaço e tempo, ambos com o gosto do desconhecido: pois já não somos quem ouviu a canção, e há muito deixou de existir quem aspirou o perfume.

Inexplicavelmente, somos de novo a criança a quem se fazia comer um bolinho de feijão onde se escondia um fiapo de charque, sabor, surpresa, odor nunca mais experimentado pelo adulto. Somos o adolescente apaixonado, descobrindo a glória de ser amado e de amar, pela primeira vez. E somos o adulto que se deixou atrás, de repente sozinho em meio à estrada, e a quem a vida tantas vezes enganou, apunhalou.

Todas essas coisas me vieram ao espírito ontem, quando o homem entrou no vagão e de repente me lançou aos ouvidos a expressão que eu ouvira anos antes. O homem, um desconhecido, falou. Sem o saber, sem querer, sem nem desconfiar do que poderia conter sua simples frase, talvez um galanteio desajeitado, um jeito de chamar minha atenção para sua figura, banal, corriqueira, apesar das roupas caras, do chapéu. que retirou quando entrou no vagão, do sapato certamente comprado em loja elegante dos Champs Elysées.

O homem se sentara na poltrona a minha frente, depois de um Bonjour madame cerimonioso. Respondi, voltei a contemplar a paisagem que passava rápida do outro lado dos vidros.

Era primavera, árvores já carregadas de brotos verde-claro corriam ao lado do trem. Pelo reflexo da vidraça vi os olhos do homem pregados em mim. Notou que eu o via, desviou o olhar. Imaginei que desejou se justificar, os franceses sempre andam se justificando, mesmo quando você não lhes pergunta nada:

Excusez-moi, madame.

Aguardei, sabendo o que diria. Na França ninguém encara ninguém, somos todos mais ou menos invisíveis na ruas, nas lojas, nos cinemas, e o modo como o homem me olhava, demandava mesmo uma desculpa. Tirou o chapéu, começou:

Pardon, madame...

Esperou um pouco, depois pronunciou as palavras, quase as mesmas, não fosse a diferença dos idiomas. Aguardei. Perguntou, alguém já me havia dito que meus olhos lembravam um mar agitado, quando a ressaca levantava ondas enormes, lambia as pedras, varria a praia?

Olhos de ressaca. Olhos de ressaca foi o que o homem falou. E de súbito o passado se postou diante de mim cinzento., com sua carga de negatividade. Olhos de ressaca me dissera Bentinho, um dia distante, nós apenas adolescentes, ele fixando meus olhos, falando na cor deles, recitando Gonçalves Dias, são uns olhos verdes, verdes, uns olhos da cor do mar, uns olhos cor de esperança, quando o tempo vai bonança. Parou, corrigiu: bonança, não. Ressaca. Não entendi, perguntei:

–Ressaca? Por que ressaca?

E ele:

–Mar violento, traiçoeiro.

–Bentinho! gritei.

Como podia meu companheiro falar em traição, violência, quando só amizade havia entre nós, e isso desde quando ainda balbuciávamos as primeiras palavras e apenas ensaiávamos uns passos trôpegos? Nossas casas eram contíguas, os quintais se tocavam, um portãozinho fora aberto na sebe, para que pudéssemos entrar e sair de um lado a outro, sem que minha mãe nem dona Glória se preocupassem conosco.

Olhos de ressaca. Por delicadeza, sorri ao homem. Nunca poderia ele imaginar o poder da expressão sobre mim, fazendo desaparecer de um golpe os campos de coquelicots, o trigo dourado, a beleza do momento, desorganizando a harmonia do mundo, que eu sorvia em silêncio.

Olhos de ressaca. Por um instante, a tentação, contar ao homem uma parte de minha história, de nossa história, mas temi ser mal julgada. Como explicar a um desconhecido, no final de uma viagem ao cabo da qual nunca mais o veria, essa coisa enorme, movente, em que se tocam visões do céu e do inferno, separados apenas por uma folha trêmula, uma vida a dois?

Por isso escrevo. O homem nunca lerá as linhas que escreverei. Nem a Bentinho as enviarei. Aliás, mesmo que as enviasse, ele não as leria, Bentinho nunca levou a sério nenhuma frase minha, nem uma expressão que lhe fizesse vislumbrar a existência em mim de algo além de um desejo superficial qualquer, uma impressão qualquer, um “eu gosto disso”, “eu quero isso”. Quando eu tentava lhe fazer ver que se encontrava diante de um ser humano, coisa complexa, indefinível, ele me pedia para não complicar, ser mais direta, mais simples. No começo ainda tentei lhe dizer isto: com o passar dos anos – e sobretudo dos anos ao lado do homem silencioso que ele era, e tornado casmurro pelos anos, – eu viera a descobrir em mim caminhos insabidos, caminhos que levavam a abismos, cavernas, florestas escuras, profundezas marinhas povoadas de monstros abissais. Depois, e durante anos, habituei-me a guardar silenciosa aqueles pensamentos, medos, visões. A aceitar como evidente mas passageira, em algum recanto de meus longes, a presença daquelas florestas, cavernas, abismos. E aprender a não as temer, antes conviver com elas.

Silenciosa, até que um dia aconteceu: alguém aceitou escutar as tímidas e desajeitadas tentativas de penetrar, de descrever essas cavernas, esses abismos. Foi quando Escobar entrou em minha vida. Em nossas vidas.

Escrevo, pois, para dialogar um pouco com esses meus monstros. Para interrogar o passado, preencher, de algum modo, a monotonia da minha existência atual. Imaginar outras vidas possíveis. E também trazer à tona todas aquelas que vivi, vivo, escondidas sob acontecimentos palpáveis, atrás da concretude dos fatos, certamente mais ricas que a banalidade do quotidiano.

Para mergulhar talvez em mim, eu de olhar enigmático. Olhos de ressaca, vá lá..

SOBRE A AUTORA
Luzilá Gonçalves publicou De volta a Palermo e Os rios turvos

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