Três e trinta da manhã. O sono, um sonho distante. Meu corpo estendido no sofá e Jeanne Moreau falando sobre a maldição da beleza absoluta. Em frente à porta do quarto percebo a gata branca. Ela me olha. Tem a cabeça pequena e olhos muito grandes, que parecem tristes na composição geral do conjunto. Talvez seus olhos sejam do tamanho normal e o fato de a cabeça ser pequena é que dá a impressão de que eles são maiores e melancólicos. No banheiro dos fundos, outra gata, a preta, mia. Está presa. Vai passar alguns dias aqui e não se deu bem com a gata branca. Um amigo viajou e pediu que a abrigasse por um tempo. Tem água, comida, uma almofada e uma caixa de areia no cubículo. Mas creio que não está confortável pois, sempre que lembro dela, penso no gato emparedado de Poe e quase chego a escutar o pequeno coração retumbando pelas paredes do apartamento. A gata branca continua a me olhar e Jeanne Moreau some no chuvisco azulado do aparelho de TV que perdeu o contato com um satélite muito longe daqui.
Conto de 1 a 120 e de 120 a 1, vezes repetidas. Costumo fazer contagens, listas, jogos mentais e um variado repertório de brinquedos intelectuais que inventei ao longo dos anos para noites como esta. Teriam a função hipotética de restaurar o sono perdido, mas sempre me despertam mais. Minha cabeça costuma ser uma boa companhia para as noites de insônia. Solidária, ela parece não desligar nunca. No entanto, não consigo escrever. Há alguns anos era diferente. A insônia não era um baque às três e trinta da madrugada. Era uma continuidade. Acordava às seis e ia dormir às duas, três, por vezes quatro da manhã. Assim, era fácil ser produtivo. Era fácil escrever um livro, trezentas vidas. Porém, hoje a insônia se configura de outra forma. Deito cedo, sinto sono. A noite parece perfeita. Às três e trinta, um pouco mais, um pouco menos, tudo se quebra, um copo partido entre os dedos.
Jeanne Moreau retorna e é uma velha de suéter vermelho e colar de pérolas a falar sobre a maldição da beleza absoluta. As atrizes da Nouvelle Vague não envelhecem e essa senhora de ar requintado certamente não é Jeanne Moreau. Acreditar nisso é uma verdade estabelecida para mim essa noite. As atrizes da Nouvelle Vague existem apenas em preto e branco, como as duas gatas, a que me espiona, a que me denuncia. A TV, novamente sem sinal. Quantos nomes estapafúrdios de homens posso enumerar de A a Z?
Em noites como essa perco totalmente a fé em mim, na capacidade de ser algo ou alguém para além da insônia. Se esvaem todas as vontades. De ser um grande jornalista, amante, cineasta, escritor. As palavras com as quais lido nas noites de insônia são, sem sombra de dúvida, patéticas. Elas giram como móbiles e me encantam por horas, mas se esgota aí toda a capacidade que possam ter de beleza. Claro, algumas delas cantam e pedem um conto ou um poema, mas a letargia e estupidez que de mim se apoderam não me movem ou comovem. Em noites de insônia, vivo em estado de vírgulas ininterruptas. Vírgulas negras sobre papel branco, não mais.
Jeanne Moreau volta mais uma vez, mas me desprendi dela. Ao menos momentaneamente. Preciso ver se a gata preta está bem. Não acho os meus chinelos e sei que quando passar da sala à cozinha, o chão estará gelado. Deveria procurar os chinelos antes e evitar o desconforto. Mas o coração da gata preta me chama. Ele bate alto, goteja sangue. Meus pés doem um pouco ao contato do chão da cozinha, mas logo se acostumam. O piso parece um tabuleiro de xadrez. Meus pés, dois peões. Abro a porta do banheiro, entro e a gata se enrosca nas minhas pernas. Fecho a porta e sento na privada. Dez minutos de afago e meu coração dividido como um bife de fígado.
Cansei de Jeanne Moreau. Poderia agora dançar um pouco, ou ler e-mails, ou pintar o apartamento inteiro. Poderia chorar e, quem sabe, dormir soluçando. A gata esfrega seu queixo contra o meu. Poderia fazer uma caminhada e aproveitar para recomeçar a fumar. Ou bater uma punheta pensando nas atrizes da Nouvelle Vague. Ou nos atores. Poderia escrever uma obra-prima, ou ler uma das tantas que não li, mas só consigo pensar na metragem do celeiro onde eu empilharia os 400 corpos do sono que não vem. A TV não sai do ar há quinze minutos. Acho que agora segura. Mas os créditos brancos sobre fundo negro levam Jeanne Moreau de mim. Zapeio. Uma luta. Um programa de culinária. Um seriado policial. Um culto evangélico. Leilão de gado. Uma luta. Um programa de culinária. Um seriado policial. Um culto evangélico. Leilão de gado.
A gata branca se encostou numa almofada. Vai dormir. A gata preta silenciou. Deve estar dormindo também. Três canais em manutenção. Muitos desenhos animados. O noticiário 24 horas avisa que o dia parcialmente nublado promete pancadas de chuva. Oito horas manhã. Vou deitar e só ai percebo que meu olho esquerdo não enxerga nada. Visão parcialmente nublada. Desabo e sei que sonharei com pequenos monstros incendiários e com Jeanne Moreau pelas próximas duas horas. Não mais que isso.
SOBRE A AUTORA
Micheliny Verunschk é autora de Geografia íntima do deserto e Cartografia da noite
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