Flan náufrago

Aniversário da mãe. O menino fuça o armário
e vai fazer um flan de caixinha com
calda imita ameixas. Come o flan pedaço no
meio da colher banhada em calda, um
naufrágio. A mãe é diabética, o menino suja a
louça, não lava, mas é um amor que está ali
derretido no açúcar caçoa do medo da morte /
e ela come. O planeta é que anda a dar voltas
em torno do Sol como se nada fosse doce a
gente toma garapa imaginando a Via Láctea
expandida além dela o espaço infinito de
silêncio eterno talvez vikings astrais cometas
macios de brigadeiro tudo o que é possível, até
um flan de aniversário. Que as nossas cáries
tenham a ver com a cultura caneeira
implantada pelos portugueses e os
trabalhadores rurais
de hoje remontem a cinco séculos de trabalho
escravo é coisa que implica na doçura, e de
modo algum podemos isentar as corporações
alimentícias do efeito que gradativamente
essas delícias simuladas terão sobre o nosso
prazo. / O menino leu a receita no verso da
caixa piscando a cada palavra. Ali dentro, em
forma de futuro, estava um mistério.


Materno

O efeito da maternidade seria esse: dedicar-se sem
sentido. Eu vou te dar cama e
comida, eu vou te dar meu colo e calor. O bicho
rastejava manco dolorido acertado a pau as
ancas quebradas e a criança abraçava-o com os
olhos, sorria prevendo a bondade e se dizia:
meu bem meu bem. Mas agora lhe vêm as imagens
num dia que amanhece: foi sua própria fúria,
convertida em mãos, a acertar os quadris do gato
com um cabo de vassoura.
O bicho mia fraco, esganiçado. À criança vem-lhe
de chorar. Eu não quero nunca mais
sentir vergonha. Olha para os lados, o matagal
avança semisseco na lonjura, aqui só tem eu
e essa metade de gato. E o cabo de vassoura sujo de
sangue ali mais adiante. Desculpa,
desculpa! O olhar do gato não toca em nada, nem
em mim. A criança larga-se aos soluços
diante do gato que agora só geme baixinho, para si.
Perder um filho vai contra a ordem
natural das coisas. Ela começa a puxar seus
cabelos e esmurrar-se no rosto,
grita de tristeza.
Se não voltar pra casa esta noite estará deitada ao
relento, fingindo desconsolo, dormindo
na dor de perder o filho que não teve.
(e agora mais uma sobre a infância)
*
O avô levava o menino para cortar cabelo na
associação dos aposentados e por isso
não poderia ser domingo, já que no domingo se
descansa. Mas o dia estava sim com uma
moleza missal, de quando se sai do culto próximo
ao meio-dia e se passou três horas
acumulado em gentes a dizer de Deus, as juntas do
corpo carecem de almoço e as pessoas
se abraçam, até domingo que vem.
“Pode rapar tudo, fazer corte militar. Assim
dura mais.”
Precisava pôr duas almofadas e um toco na cadeira
para que o menino ficasse a uma
altura razoável, de olhos quietos e medrosos,
assistindo à decisão que os adultos tomavam
sobre sua cabeça. O avô se vira para ele e diz “Eu
preciso ir no centro da cidade comprar
remédio. Você me espera aqui” e depois ao
barbeiro “Não vou demorar, Valter. Você cuida
dele?” e o Valter responde: “Pode deixar, João” e o
avô se foi.
Esse Valter era um homem gordo e sorridente e
velho. “Nossa, como você tá
grande” ele diz ao menino, “eu conheço você
desde que você era desse tamanhico” e
contrapõe as palmas das mãos, deixando entre
elas um vazio. “Seu avô sempre te trouxe
aqui, você lembra?”.
O menino, que ainda não sabe o tamanho que tem,
fica confuso e tenta agradar:
“Lembro”.
A máquina ligada tolhe os cabelos e no couro da
cabeça uma sensação de unhas
finas e rudes fazendo carícia, todas juntas na
mesma direção. “É, seu avô trazia você aqui
no colo. Mas agora já não dá mais pra te carregar
no colo, hein”. Dentro do copo, o pincel
soca uma espuma cada vez mais branca que vai se
avolumando e se avoluma até
transbordar. “Agora você é quase homem feito, só
falta ter barba na cara!”. A espuma
gelada na nuca arrepia. O menino, que se segurava
pra não rir de nervoso, agora desata uma
gargalhada miúda, em sussurro.
“Faz cosquinha, faz?”
“Faz...”
E os dedos do homem como aranhas escalam as
ancas do menino chegam aos
sovacos mordem o pescoço o menino se
contorcendo na cadeira de tanta cosquinha “para!
para! para!” e ri pulmões afora, sem lugar para
vaidade. O velho se recompõe, divertido a
respirar de boca aberta, e o menino sorrindo olha
pra ele pelo espelho, sem cumplicidade. A
lâmina, por fim, arranca a espuma do pescocinho.
“É, você tem muito cabelo, só falta ter barba na
cara”. E, como a descobrir um
segredo, ele se dirige aos olhinhos limpos do
espelho – “Será que não tem?”. O menino
fecha os olhos para se esconder. Da visão dos
dedos grossos do homem varrendo-lhe o
rosto em carícia, de uma orelha à outra o caminho
da barba futura, detidos com mais
atenção na pele fina dos lábios entreabertos, agora
um dedo na gengiva, agora o rosto livre
de contato e o homem agachado à sua frente pra
brincar: “Vamos fazer a barba?”.
O menino sorri.
A espuma se espalha na pele sem pelos; cuidadosa,
a lâmina lava do rosto o limite branco.
“Pronto!”, diz o velho, de voz cheia, as mãos
apoiadas nos ombros do menino com
os polegares a afagarem-lhe os lóbulos das orelhas.
“Pronto!”, como quem fez o almoço e
lavou a louça. “Ficou bom?”.
O menino assente com a cabeça.
E logo as mãos se tornam aranhas de novo,
arrancando risos da criança, mordem-lhe
o pescoço, descem pelos sovacos até as ancas, o
menino se contorce na cadeira e as aranhas
lhe agarram uma de cada lado por dentro do
elástico uma levanta-o pelo pipi e a outra se
esconde num lugar que ele nunca havia tocado,
como um macaquinho ele se agarra no
braço grosso do barbeiro, para não cair, e depois
ganha um chiclete.
Agora o menino volta para a luz dominical.
Pelas mãos do avô, ele percorre o corredor escuro
e úmido da associação de aposentados, passa por
salas em que velhos jogam damas e, quando chega
à calçada, a claridade é tão forte que ele precisa
fechar os olhos bem fechados. E ainda assim, no
esconderijo vermelho das pálpebras,
persistem estrelas escuras.

SOBRE O AUTOR
Marcos Visnadi é escritor e esses são trechos do seu primeiro livro, Atlas, que deve ser publicado este ano

 

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