Nome: Roupa que nos dão. Vestimos ou rasgamos.(In: A Mulher que queria ser Micheliny Verunschk)
Quando minha irmã nascEU, minha mãe pegou o nome dela e dEU à minha irmã. Minha mãe registrou e batizou a minha irmã com aquele nome.
O nome da minha irmã foi minha mãe quem escolhEU. MEU pai, não. Naqueles dias mEU pai adoecEU. Era mEU pai quem dava os nomes. Mas, daquela vez, mEU pai não dEU.
Com pouco tempo depois, minha mãe pegou barriga de novo, com mEU pai e, aquela barriga da minha mãe com mEU pai, era EU. EU nasci e a família crescEU: mEU pai, minha mãe, minha irmã e EU.
Mas mEU pai continuou muito doente. E, ali, onde a gente morava, era muito longe do mundo. Minha mãe fez de um tudo para mEU pai ficar bom. De um tudo, ao mEU pai, minha mãe dEU. Mas não teve jeito: mEU pai piorou, piorou e, um dia, de noite, mEU pai morrEU.
Minha mãe chorou muito, enterrou mEU pai e a família encolhEU: minha mãe, minha irmã e EU.
Com pouco tempo depois que mEU pai morrEU, minha irmã adoecEU. Minha mãe fez de um tudo para minha irmã ficar boa. De um tudo, à minha irmã, minha mãe dEU. Minha irmã continuou muito doente. E, ali, onde a gente morava, era muito longe do mundo. E, aí, não teve jeito: minha irmã minguou, minguou e, um dia, à tarde, a minha irmã também morrEU.
Minha mãe enterrou a minha irmã e a família encolhEU mais ainda: Minha mãe e EU. Minha mãe, de tristeza, quase desaparecEU.
Muito tempo depois EU cresci mais, botei corpo de mulher, os cabelos pintaram de branco e minha mãe envelhecEU.
E, com o tempo, minha mãe adoecEU. EU fiz de um tudo para minha mãe aguentar mais tempo. De um tudo, à minha mãe, EU dei. Mas, ali, onde a gente morava, era muito longe do mundo. E, aí, não teve jeito: minha mãe foi perdendo as forças, foi perdendo a cor, foi perdendo viço e, um dia, de madrugada, a minha mãe também morrEU.
EU, quase morta, enterrei a minha mãe e, da família, só sobrou EU.
Mas quando minha mãe caiu doente, EU acho que minha mãe percebEU: me chamou no quarto. Minha mãe estava deitada com um lençol branco, cobrindo do pescoço até os pés.
- Sente-se aqui junto de mim, do meu lado direito.
Minha mãe desembrulhou um pacote.
- Quem é essa menina desse retrato?
- EU, minha mãe.
- É não. Era sua irmã. E essa, desse aqui?
- Minha irmã, minha mãe.
- É não. Era você. Essa é você, e essa era sua irmã, as duas com a mesma idade. Quando sua irmã morrEU, você ficou usando roupas, sapatos, cordãozinho de ouro, presilhas, brincos, tudo da sua irmã. Cara de uma, focinho da outra. Como aqui era muito longe do mundo, ninguém nem dEU por falta da sua irmã que morrEU e nem notou que você nascEU.
Para que procurar padrinhos de novo? Para que batizar você de novo? Para que registrar você de novo? Para que tudo de novo, se tudo da sua irmã ainda estava novo? Se você, sem tirar nem por era a cópia fiel da sua irmã? O registro da sua irmã passou a ser o sEU. O nome da sua irmã, como a roupa, os sapatos, como tudo, caiu como umas luvas de algodão que EU tricotei para sua irmã e que também ficaram para você. Não tinha diferença nenhuma, uma da outra. O nome da sua irmã em você foi um unguento na minha dor de perder uma filha. Fez com que eu ficasse de novo com sua irmã e você. As duas. Juntinhas, em uma só pessoa: você. O nome ressuscitou, trouxe paz, conforto.
- Minha mãe, por que a senhora escondEU essa história por tanto tempo? E agora, EU? Acho que a senhora, minha mãe, me enlouquecEU.
Minha mãe pegou o pacote e me dEU. Sem nem mais pestanejar.
- Pronto. O nome vai ficar só com você. Se quiser permaneça com esse nome e com sua irmã, juntas. Se não, fique com o nome só pra você ou, ainda, troque esse nome por outro nome, se esse nome lhe apertar, fizer calor, calo, der coceira. Agora feche a porta.
MEU pai morto, minha irmã morta, minha mãe morta, um arquivo morto nas mãos e, EU, de miolo mole, não sabia mais se EU era minha irmã ou se minha irmã era EU. Isso demorou muito até EU separar minha irmã dEU e voltar a me sentir, de novo, EU.
Um dia um homem aparecEU. Pediu para ficar morando mais EU. EU aceitei e, em troca, esse homem fez logo uma filha nEU. Esse homem era um caixeiro viajante e desaparecEU. Minha filha nascEU. E era a cara da minha minha irmã, que era que nem EU. Passou um tempo e a minha filha crescEU. Um dia ela adoecEU. Como ali era muito longe do mundo, EU nem esperei. EU peguei mEU registro com o nome que foi da minha mãe, da minha irmã e é mEU, e disse à minha filha: tome, filha, agora esse nome é sEU.
SOBRE O AUTOR
Wilson Freire é autor do romance A mulher que queria ser Micheliny Verunschk
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