A luz cobria aquela rua que a tudo abraçava, os que nela viviam, os que nela passavam, dissolvendo os falares diversos. Translúcido o jeito como preenchia os olhos da gente, seu corpo estreito, como se existisse para se pegarem as coisas de jeito, o sorriso das portas e as janelas em sim, abertas para o mundo, e ainda, como segurava o sol quando amanhecia sob os telhados. Pois Glória pisava leve, fecundava devagar, sem que ninguém percebesse de imediato, tudo em volta e por dentro, fisgado. Sei porque minha infância em seus braços, e neles sempre parecia furtivo. O tempo diria d’outro modo, bem mais tarde, quando ela se fazia mesmo entranhada em nossas veias.
- Bom dia, disse, tirando-a de um certo transe, enquanto a visão do Recife. Ela enchia-se pelo sol, foi o que me disse Samuel, e sorria de volta, desajeitada, por não saber falar.
- Os contornos daqui são mais cinzentos, não acha? Insistiu e ela, com a bolsa nos braços. Foi dessa vez, lembrou-se o relojoeiro, e ninguém nunca soube se foi assim mesmo sua chegada, a não ser por intermédio de vagas lembranças. Então, funcionários, parentes e amigos queriam a nave, nutrindo de vozes o porto, também chapéus e mãos acenando. Todos exalavam ansiedade na chegada, a fila de passageiros nos degraus, eu me lembro, quando segurava o endereço na mão, nossos nomes, os quase distantes parentes. Esther, minha irmã, e sua amiga Bertha olhavam-na atentas. Ficamos sem saber por instantes quem poderia ser, até que deduzira sermos nós, os últimos no pátio. Não havia bagagem, coisas a esquecer.
E o Recife abria-se a ela que fotografava tudo em seus olhos secos. Cruzamos a ponte, o rio pardo e as árvores. A luminosidade retirou-lhe, a prima que atenta permanecia no fundo da boca, falando entre piscadelas de surpresas. De lá e cá, minha mãe nunca soubera de sua existência. Guardou-lhe um quarto com balcão, para que pudesse ver a rua. Deitou colcha nova e sobre elas travesseiros brancos, cortinas e tudo mais que uma mãe faria. Como a rua que abraçava, desejou dizer bem-vinda à pródiga que retorna à casa. Deu um salto na rua da Conceição, comprou escrivaninha de segunda, e a cadeira de palha doada pela mulher de Simão, o açougueiro. As frutas, apanhou-as no Mercado assim no toque, como quem apalpa corações. Deduzia fome qualquer, pôs louça branca e tudo mais.
Então as portas do carro de aluguel anunciavam a chegada, quase no quintal que dava para a rua da Mangueira. Mamãe olhou saiu da janela, tentando disfarçar. Reconheceu alguns traços de família, encobertos na tragédia. Recordo quando entreolharam-se , um abraço tímido, as mães que se reconhecem. Um não sei o que entre coragem e esperança. Foi de repente que meu pai chegara da loja, o único a falar iídische, pois corrente era entre Bobe e Zeide em sua casa, ou quando ia à Maciel Pinheiro, a gente da nação.
- Bom dia! Saltou de sua boca, inesperadamente. A única vez em que a vi sorrindo. Meu pai cumprimentou-a, convidando-a para a sala, pelas mãos que passavam sobre a mezuzá, nós ali, feitos do mesmo barro. Tomamos seu mutismo por tristeza, entre o instante e o distante, como se chegasse a uma festa tarde demais. Estranheza de palavra perdida que não consegue dar conta da vida. Era mais ou menos doze, resolveu-se pelo almoço mais cedo e ela comeu com parcimônia, um cansaço para atingir. A ternura de minha mãe conduziu-a ao quarto, seus olhos.
E quando na sala, papai nos contou que nem todos tiveram enterro, dela apenas o sobrenome, o mesmo da tia avó, o mesmo Schtetl, e mais nada, uma mulher de sombras roçando por dentro. O restante do dia para descanso, horas da tarde, certa brisa, até beijar a noite o Recife distraído, sem que percebesse da prima e o silêncio no quarto.
No seguinte, os bocejos de Glória pelas portas, a louça do vizinho, a água solta na pia, as casas acotovelando-se umas nas outras, puxando os raios para baixo. Um barulho mínimo rangia a escada, sua espinha de madeira colhendo o peso dos corpos, Esther e minha mãe esperavam-na com um sorriso, café da manhã com bolo de mel. Pelos olhos apenas, as mãos atentas de minha mãe tentavam falar, até minha tia Raquel, para ajudar na comunicação. E a comunidade já cochichava maneiras de abraçá-la. Saíamos eu e meu pai muito cedo todos os dias, a loja perto da ponte. O que seguia mesmo, a rotina acomodando um pouco melhor as coisas, os ritmos, enfim. Certa manhã, subindo a rua, outro percurso em direção ao centro do centro, escutaram os cumprimentos de quem estava na janela, as três mulheres.
- Bom dia, Esther! Mamãe respondia, de braço dado com a prima, passando pela escola, o número 215, até a curva na rua Velha. Uma pequena encruzilhada, espaço de passagens. A rua da Matriz, de mesma estreiteza, tinha sobrados mais altos, com balcões de ferro e lojas embaixo no começo da praça. Senhoras seguravam pacotes, homens desciam bondes pesados, outros conversavam em ladino, tudo que fazia a prima reconhecer-se um pouco mais. Os pequenos com açúcar candy, jornais entre os dedos dos grandes, encontros. E foram caminhando, sem perceber que nada de montanhoso, mas o que de repente desafiaria o rosto, um choro contido, tão logo desgrudara-se, do fundo lembrança qualquer. Tia Raquel e minha mãe atentas, diante da Hospício, juntavam-se ao barulho do bonde, as crianças, o movimento, uma espécie de loucura. Resolveram retornar. Em casa, ela subiu e passou boa parte do dia deitada.
- E então, Judith? Perguntou tia Raquel.
- Não sei, a água escorrendo na chaleira, as folhas farfalhando, sua atenção. Passou um café, tomaram em silêncio e se despediram. Quando a casa serena, as duas saíram, e minha mãe deixou os recados a Berenice, que escutava com altivez. É que a negra viu a prima sentada na cozinha, e seu cabelo ralo. Berenice meneou. Não soube falar, a timidez de quem se depara com o desconhecido. Apontou para as frutas e a prima pegou uma tangerina.
- A senhora vai onde, mesmo? Perguntou ela, segurando roupas, e nenhuma resposta. Ela deu de ombros e foi cuidar, tinha lavagem até os punhos. Fez o sinal da cruz, beijou São Jorge. A prima não entendeu, mas escutou-a dizendo a palavra sorte, perdendo-se por entre as toalhas e os lençóis dependurados no quintal de sombra verde. Quando já não sinal de gente, fechou o portãozinho que dava à rua da Mangueira e deixou-se por ela. A mulher e seu número de chumbo. Na esquina, a mangueira imensa, aventou-se pela ruazinha, o exercício de uma liberdade arrependida, antes com as parentes brasileiras. E deixou-se até a campina, no final da rua, um resto de terreno comum aos quintais das casas, quando Glória e Alegria se encontravam e faziam dali em algumas tardes o melhor futebol da meninada, os mexericos comuns, e, às vezes, aquela ciranda animada entre palmas e cantos e letras diferentes. 1950 era assim, por ali. Deixou-se por alguns minutos sob as nuvens brancas e o azul imenso. Em casa, o portão batia, e Berenice dizendo: - olhe só, dona Judith, de repente ela levou uma tangerina e sumiu. Judith buscou-a dentro de casa, o coração corria. Mas Esther, tal figuração de sonho, chegou minutos com os braços mais dados e a prima para alívio de sua mãe.
Bernardo, médico, disse que era questão de tempo, pois casos mais graves havia. A prima, entre pausas enormes, era por papai traduzida. Houve guelfite fish. E depois a lua cheia deu aos sobrados uma Boa Vista do bairro, telhados banhados em prata. De seu quarto, a prima absorveu o coração da rua, entorpeceu-se. Ela quisera muito? Naquele instante, apenas a réstia brilhante sobre o chão de mosaico, até desaparecer no sono. E assim as noites, e os descansos, durantes inteiros, até chegar outra manhã. O cheiro de café e o trincar da louça já diziam de tia Raquel e suas novidades, uma amiga Yeda se casara recentemente, cliente de loja de roupas. Precisavam de bordadeira. Papai traduziu a proposta, e ela com receios. Lembrava-se quando trabalhava na loja de seu pai, costurando depois estrelas em pijamas listados. Nelas todas, Ha tivka, papai pensando forte. Foram à rua das Flores, 106, à tarde. Emprestaram-lhe um colar, um chapéu e o primeiro batom depois de anos, mas o sorriso por dentro. Cortaram o caminho pela Imperatriz, prometendo-se comemoração, caso fosse aceita, um lanche na confeitaria.
Mas a função já ocupada escondia certo azar ou outra razão? Voltaram em silêncio, tendo a Confiança mais adiante. Comeram lá de toda sorte. A prima ficara muda outra vez, mastigando o pedaço de bolo, sorvendo o chá. A preocupação das mães em inseri-la aparecia nas pausas curtas, nos olhares ao teto. Onde se encaixam os cacos? O que se faz quando a feitura de nós é deles? Sem mais, seguiram à Maciel Pinheiro, em vez da Matriz, dobrando à esquerda, porventura a Travessa do Veras, onde um jasmineiro recobrava o doce da vida. Um vazio estrondoso que a prima a todo custo abafava, pois seu medo de assustar demais, todos os parentes que lidavam com barulhinhos do cotidiano. Mamãe tinha a impressão, confessou-me certa vez, que se abrisse a boca com vontade, traduziria uma falta arrancada do oceano, coisa que não se suporta, pois sem tamanho. Alcançaram a rua Velha, rumo à Santa Cruz, cúmplices e sem coisa maior, o respeito por si, além dos saltos dos sapatos na calçada de pedra portuguesa. Ao dobrarem a rua da Mangueira, viram Berenice, a lindeza da cor. Era sexta, e as velas estariam acesas mais tarde. Papai já em casa comentava quanta gente ia ao centro nesses dias.
- Você sabia, eu não tinha tanta liberdade assim, disse-me papai, no meu tempo, ficávamos mais em casa, os horários e tudo.
- Pois, não é privilégio, meu caro, saiba você, que eu e muitas amigas minhas fizemos a mesma coisa... Mamãe entrando em casa com ar de afobada, sapecando-lhe um beijo na testa. Aprontamos a mesa, a reza, depois servimos a comida e fomos ao quintal conversar. Papai lembrava-se dos pepinos em conserva de dona Ida, mamãe de fludens recheadinhos com jambo. Riram dessa história. Em reserva, conversaram os dois sobre a tarde da prima e sobre a esperança. Mas naquela noite, subiu e fechou porta, após um mês e pouco no Recife. Papai chegou a confessar-me ali que ela, semanas antes, comentara o desejo de morrer aqui.
E fomos dormir noite grande. Abriu devagar a porta do balcão e olhou as estrelas. Da gaveta, tirou linhas e agulhas, retalhos comprados em São José. E sem demora, começou a cortar devagar, uma após outra, verde, amarela, todas elas de seis pontas, as estrelas. Compulsivamente, no lençol branco, umas com sete, outras com oito, as pontas dos dedos em sangue, bordou-as. Embrulhou-se com o lençol estrelado, suportando o gosto amargo do corpo. E como se suspensa, acordou e viu-se em casulo, com os joelhos dobrados. Desembrulhou-se e permaneceu solta na cama com suas cicatrizes.
O teto, alto e liso, media o outro limite do chão. Então, abriu a porta. Uma brisa suave dizia que a cidade ainda dormia. Nua, entre a casa e a rua. Voltou ao quarto, a si mesma e meteu-se em vestido vermelho, levemente aberto, uma cor derramada, presente de dona Judith. As mangas curtas adequavam-se ao clima tropical. Passou batom, abriu a porta do quarto. Mamãe flagrou-a, mas com o indicador nos lábios, pediu-lhe segredo. Então, deixou-a, igualmente como acolhera. As lágrimas desciam em absoluto silêncio. Deu-lhe algum dinheiro, e disse-lhe que a casa estava sempre aberta. Mamãe encontrou saudade.
A luz cobria a rua que a tudo abraçava como se existisse no sorriso das portas e as janelas que começavam a abrir, o sol quando amanhecia sob os telhados. Pois Glória, naqueles tempos pisava de levinho, fecundava definitivamente, sem que ninguém percebesse. Então, a porta da rua foi aberta diferentemente no sábado, depois das estrelas no céu, das estrelas de pano, das primeiras luzes. E com gentileza, inaugural o nascimento. Ou liberdade? Procurou um nome para si, algo definitivo, deixaria de ser a prima, a parente distante, a mulher sem sorrisos, a mulher e seu número de chumbo no braço, mas seria qualquer coisa? Para um rumo que lhe salvasse, e de relance, viu preso na parede da rua, na casa da frente, ao lado do convento, o nome Glória. Leu para dentro, memorizando, uma posse que valesse mais que o esquecimento. A prima soubera que em vão jamais, que vitória maior era ser, e se quis assim, repetiu o nome Glória para si, sem saber do que se tratava. E partira consigo no oco da rua, com sua pouca coisa, como nós quando chegamos ao mundo, à luz de um um nome, atravessando seu batismo nas águas salgadas dos olhos, barrentas do rio das capivaras, as do Mar Vermelho, algo que surge entre a escolha e o caminho.
Alexandre Furtado é doutor em teoria da literatura pela UPE. Escritor e professor de literatura inglesa da UPE - Campus Norte e coordena o café cultural da Fafire