Era dia de posse. Programara-se uma solenidade simples, numa reunião ordinária, quase sem discursos e sem festa; qual festa? Tudo ao gosto do homenageado, que aceitara a posse sem salamaleques. Humilde e natural.


Mas a humildade e o natural tiveram que ceder espaço ao absolutamente inevitável. Foi o que aconteceu durante a chegada solene do escritor Gilvan Lemos à imortalidade, ao tomar posse na cadeira 28 da Academia Pernambucana de Letras. Os trâmites típicos de um rito acadêmico – mesa com as mais altas autoridades do Estado, longos discursos laudatórios, coquetel sofisticado e música, muita música - tiveram que ceder à mais discreta ausência do luxo mundano. E com direito a uma ausência ainda mais radical: a do próprio homenageado.


Às vésperas da posse, Gilvan Lemos, de 84 anos, sofreu uma queda no banheiro da casa e quebrou o tornozelo. Devia realizar-se agora apenas o indispensável. Ele nem mesmo podia ter pensado nisso, mas a posse ocorreu na sua ausência. Menos, muito menos, do que o inevitável. Um despojamento que nem ele mesmo esperava.


Desejara apenas assinar o livro no silêncio da Casa, sozinho, sem mãos para aplaudi-lo nem autoridades para recebê-lo. Sem terno e sem lenço. Bastavam as humildes sandálias, que o conduziam pelo silêncio, por quartos e salas da morada, onde convivia com personagens e histórias, transformados em romances, novelas e contos.


Na verdade, essa lição de humildade começou quando ele foi aclamado acadêmico, sem ter disputado, é claro, a eleição, naquilo que se caracteriza pelo reconhecimento à sua importante obra.


Gilvan, porém, já havia se candidatado à academia uma única vez, mas acabou sendo derrotado, e no seu lugar entrou o escritor Valdênio Porto, que chegou a presidir a Casa em duas gestões. Isso naturalmente ocorre entre os intelectuais, recordando-se que Guimarães Rosa concorreu três vezes à Academia Brasileira de Letras, só alcançando êxito na quarta. Morreu pouco depois da posse em 1967.


Os acadêmicos pernambucanos, porém, sempre consideraram importante a presença de Gilvan entre eles e, por isso, planejaram a aclamação, nem sequer esperando que ele fosse candidato outra vez. O escritor ocupa agora a cadeira que pertenceu a uma escritora também silenciosa e humilde – Estefânia Nogueira; que se notabilizou pelo trabalho poético – com vários livros publicados – e pelo conhecimento da literatura inglesa, mestra de várias gerações.


Gilvan começou a se tornar invisível quando se autoexilou em seu apartamento da Rua Sete de Setembro, num andar muito alto, de onde via a cidade aos seus pés e ouvia as vozes de camelôs e vendedores de toda ordem. Observando o Recife no corre-corre do dia a dia, das pobres almas famintas e esmolambadas, em busca de alguma virtude para continuar vivendo.


Transformou-se num homem de silêncio e vulto, mas num vulto tão apressado e quieto, que nem mesmo os amigos podiam avistá-lo. A posse de Gilvan na APL representou o retorno do escritor ao convívio social.


Confira a segunda matéria de Inéditos por Daniel Antônio, aqui

 

 

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