Ilustração por Janio Santos

Quando da abertura do testamento do pai, a mãe ficou com a casa na cidade e algum dinheiro; a irmã recebeu a casa da praia, o carro e algum dinheirinho; a outra irmã, um pedaço de terra e um outro algum dinheirinho; e ele herdou do pai uma frase.

...deixo-lhe esta frase...

Esta frase? Uma frase? Que frase? Parece óbvio e talvez um lugar comum, mas com certeza óbvio, que ele fez uma dessas — quem sabe todas — perguntas, releu o testamento, soube que o pai disse ainda que o filho saberia viver com a frase e, por fim, ele ficou com a frase.

Mas uma frase?

Saiu da leitura do testamento com a frase (uma frase até bonita, ele pensava) se perguntando o que fazer daquela soma de palavras. O que fazer do legado do seu pai.

A primeira hipótese que lhe ocorreu foi tentar o mercado publicitário. A frase poderia virar um slogan famoso, que tal uma frase de efeito, persuadir multidões, a frase, afinal de contas, poderia valer os seus tostões. E ele saberia viver com seus tostões. Bateu de porta em porta com a sua frase embaixo do braço, mas ninguém se interessou. Deu uma polida na frase e se meteu em algumas passeatas, talvez seu destino — da frase — fosse ser uma poderosa ordem, capaz de mudar o mundo, inclusive o dele que se tornaria um líder, possuidor de uma frase tão memorável quanto I have a dream. Andou por greves de bancários, professores e funcionários públicos. Manifestações de estudantes, comícios e reuniões sindicais. Às vezes a falta de timing, às vezes a falta de contexto, às vezes o excesso de barulho mesmo. Nunca a frase foi percebida pelos outros. Ora, mas frases têm muito mais finalidades. Tentou começar um livro com ela e parou. Quem sabe no final do livro? Sim, mas e o resto? Não veio. Separou palavra por palavra e tentou registrar a patente do que compunha sua frase. Viver dos royalties, muitos fazem isso. Ele não faria: não lhe concederam o registro das palavras, não era permitido. A essas alturas, a mãe já tinha vendido a casa e se mudado para Miami, a irmã tinha dado o mesmo destino para a residência de veraneio e, com os dividendos, havia aberto e falido um negócio. A outra irmã produzia alimentos orgânicos e enriquecia no seu pedaço de terra. E ele. Aquela frase que não virava palestra, não era aceita sequer como conselho pelos amigos, nem o analista aceitou a frase-herança que já começava a incomodar. Sentenciou o doutor que ele deveria saber conviver com aquela frase. E depois cobrou por isso.

Conviver com a dita. Era o que mais ele fazia. Conviver com a sua frase, a frase do seu pai. Em sonhos, no espelho embaçado, na sua carteira, no meio da narração do futebol, em notícia de jornal, sempre ela. Lá. Ali. Letra por letra, se transformando numa grande interrogação.

Já tantos anos desde aquele testamento, resolveu tirar o ponto de pergunta que havia se encostado na frase. Uma frase é só uma frase, tantas por aí, não há o que se fazer com ela, provavelmente ele pensou, já que se levantou do sofá, foi até o quarto e pegou a frase e guardou, de uma vez por todas, no canto de uma gaveta, junto do time de botões, de um pião mais velho que ele, de algumas fotos e mais algumas memórias. Trocou de camisa e saiu com os amigos.

Foi nessa noite que conheceu ela. E nessa noite uma frase disse na sua cabeça que ele queria ter um filho.

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