Janio Santos sobre Divulgação

 

Tudo que não existe é Deus

Lubos Jakubko

Tudo que não existe é Deus– 1878 – Ed. Lotus.

Bratislava, Império Austro-húngaro, atual Eslováquia.

(1846-1907)

O que poderia ser uma alegoria fácil, aos poucos, se transforma numa mutação, um jogo de desesconder, um câncer de significados. Em Tudo que não existe é Deus, conhecemos a história de Jan Kopunek, um garoto que descobre ter a alma maior que o corpo. O garoto Jan empresta um pouco da sua alma aos amigos que reclamam a posse definitiva sobre ela. Cada vez mais habitantes da aldeia trocam e vendem nacos da alma do pequeno Jan. A alma, uma moeda de troca, acaba por faltar a todos. A pequena fábula de Jakubko parece estar sempre nos advertindo: Mefistófeles somos nós, Mefistófeles são os outros, como um relógio que não para de acusar. Mas isso seria simplista. A pequena fábula de Jakubko parece também oferecer (e ainda mais: possuir) leituras marxistas. Mas isso seria risível. O texto já foi apontado como antecipador de Kafka (nada é permitido aos corações difíceis), mas o escritor tcheco nada tem com isso. O texto foi exumado como uma parábola sobre a existência de um Deus. Isso também foi devorado. Botânico como seu único precursor*, o franco-alemão Adelbert Von Chamisso, Lubos Jakubko escreveu este livro ainda jovem, ao coletar espécies de flores raras na Patagônia argentina, e só quis dizer uma coisa: deixem-me em paz.

Trechos:

“Jan Kopunek nasceu na aldeia de B… era só um garoto. Mas tinha a alma maior que o corpo.” (Pág. 7)

“…Se Ele existe, é, portanto, culpado.” (Pág. 82)

“A função da palavra é mudar Deus.” (Pág. 91)

“A lucidez sempre renuncia a si mesma.” (Pág. 115)

“Jan Kopunek, Jan Kounek, cresceu e tornou-se adulto. Mas o seu corpo, esse seu corpo, sempre foi menor que sua alma. Apesar dos outros habitantes da aldeia.” (Pág. 132)

 

*O crítico Julian Cardoni também aponta Kierkegaard como influência. Mas isso é só um grito desesperado.

 

Tradução: Marek Kovacs.

 

Vingar Sarajevo

Naheed Pschorr

Vingar Sarajevo– 1992 – Editora Barramares.

Estados Unidos

(1960)

Sarajevo neste romance não é uma cidade, mas uma criança que foi abusada pelo próprio pai, o garoto Pavel, nascido na Iugoslávia e imigrante na Boston dos anos 90. A história que escandalizou a crítica quando publicada analisa “com profundidade a cultura do vício e da posse nos E.U.A, repleta de diálogos que nunca esperávamos ver publicados”, segundo o crítico Julian Cardoni. O relato aparentemente começa na casa da família e o horror dá lugar à compreensão com a enxurrada de palavras que são dirigidas ao garoto. No colégio, no parque da cidade, no supermercado, a figura do pai parece onipresente e onisciente. Está em todo lugar repetindo seus chavões, suas máximas, suas insinuações sexuais. O cenário exige uma predisposição do leitor para continuar a passar as páginas enquanto a autora guia-nos no que há de mais sujo na alma humana. Na terceira parte do livro, Pavel-Sarajevo ensaia uma vingança que o leitor esperará com suor nas mãos até o fim. Será que vai chegar? Vingar Sarajevoé, de certa forma, uma história à antiga, que escolheu deliberadamente chocar.

Trechos:

“- Você tem um peixe-escorpião entre as pernas, impossível tocá-lo?” (Pág. 36)

“- Imaginai o corpo de um patriarca, de um santo, que nunca vai se decompor. Serei eu.” (Pág. 97)

“- A verdade e a ficção, filho, são o mesmo monstro de duas caras, copulando consigo mesmo indefinidamente.” (Pág. 111)

 

Tradução: Bárbara Limonge.

 

Cumpra-se

Bartolomeu Maduque

Cumpra-se– 1976 – Ed. Hoje.

Brasil

(1950-2007)

Segundo volume da trilogia militar do sergipano Bartolomeu Maduque, Cumpra-seé uma magnífica narrativa contada através de circulares e documentos oficiais em um quartel de um país desconhecido. Um soldado sem nome é condenado à morte por deserção. A maneira como ele desertou: suicídio. Em uma crítica feroz ao militarismo, o autor se banqueteia com o processo kafkiano no qual é submetido o cadáver sem que a palavra “cadáver” ou “morto” seja sequer pronunciada pelos personagens. Exuberante na crítica política, flertando com O deserto dos Tártaros, de Buzzati, ferindo os olhos da obediência cega, Maduque demora-se na narrativa como que prolongando o caos e a loucura coletiva. Através da novela Cumpra-seo autor encoraja-nos a ver a literatura como uma denúncia do que há de pior no homem. Maduque, alfabetizado apenas aos 15 anos, morreu em 2007 alcoólatra, arruinado financeiramente e praticamente desconhecido da crítica e do público.

Trechos:

“Através desta , sem possibilidade do contrário, ordeno o fuzilamento imediato do Soldado.” (pág. 14)

“Eu, subtenente, apresento-me para cumprimento do dever.” (pág 35)

“Sem mais delongas subscrevo-me em nome da pátria e jurando lealdade ao dever…” (pág 53)

 

E eu ali, todo quieto

Walter P. Peixoto

 

 

E eu ali, todo quieto– 2000 – Moses Editorial.

Brasil

(1978)

O taxidermista Samuel vive do seu trabalho em Goiânia até que descobre uma terrível doença que, pouco a pouco, está destruindo seu corpo. O fiapo de enredo se desenrola em 12 capítulos que correspondem a 12 tentativas do personagem enganar a morte com uma obra de arte. Temos a descrição de um projeto por capítulo, onde se sobressai a linguagem ensaística. Uma casa inteiramente feita de carne no capítulo um; Uma estátua do próprio narrador em tamanho natural onde se projetam filmes Super 8 feitos pelo seu pai no capítulo dois; Um filme de sexo entre o narrador e sua esposa que nunca tem fim no capítulo três; Moldes feitos de gesso do quintal da sua casa no capítulo quatro e assim por diante. O autor parece querer nos dizer que a literatura é a vida empalhada, imobilizada: um artefato que tenta ser sem de fato ser. E eu ali, todo quieto ilustra com perfeição (ou quase, já que é uma tentativa) a definição de Cortázar sobre a narrativa breve: “Um caracol de linguagem, uma síntese viva e uma vida sintetizada…um tremor de água dentro de um cristal”. E eu ali, todo quietoé exemplar único, e não catalogado, da literatura de revolta. Revolta contra a brevidade da vida. Revolta contra a incapacidade da literatura. Essa chave de leitura, observada pelo crítico Julian Cardoni, ganha força quando observamos que o autor deixou o livro premeditadamente inacabado. O suicídio do texto. Walter P. Peixoto descarnou a língua, retirou o seu sangue e colocou algo no lugar.

Trechos:

“Os miolos também se retiram da caixa craniana por meio de uma ou mais mechas de algodão, presas em uma haste de arame grosso, o que facilitará a limpeza de todos os resíduos.” (Pág. 54)

“O silêncio das sereias de Kafka preenchido, devidamente preenchido.” (Pág. 87)

“Sangue de milagrosa translucidez. Minha casa feita inteiramente de carne, seus cômodos. Uma luz pálida a atravessa. E eu ali, todo quieto, sentado em um banco, também ele feito todo de carne.” (Pág. 103)

“Só quem não está à vontade com sua língua pode usá-la como bisturi.” (Pág. 129)

 

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