Neste lugar
Nenhum traço de delicadeza,
Só palavras ávidas
E o tempo,
A devoração do tempo.
Um jardim entregue
Às chuvas e aos ventos.
O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres.
Caminhos de sangue
Onde reina o amor primeiro,
Morada de súbita
Ausência do medo.
Um despenhadeiro, o céu
E uma queda
Sem alívio de esquecimento.
Nesta hora
O espasmo e um facho de luz
Embebido nos vitrais de um templo,
Ou talvez um dilúvio,
A voragem do estupro, e então
A calma trevosa debaixo d’água —
Algum arrebatamento
Algum sortilégio sobre a realidade
Que deixa um corpo lívido e cheio de glória
Como reminiscência de um bosque
Rebrilhando em noite de geada.
Por um fio
A casa deserta
Como se todos estivessem mortos.
Essa quietude de ápice consumado.
Um rastro de seda e a aranha
Numa dança mínima
Gozando a espera desapressada.
De tal modo sutil
Esse fio, esse elo com as coisas,
Que é real ondear pelos ares,
Gentil pedir licença às noites,
Agradecer pela acolhida
Ao corredor das velhas estátuas.
Uma bondade a salvo de explicações
Que este lugar exista,
Sendo tão mais humano
Que nada, mundo nenhum vingasse.
Uma beleza sem quem a perceba
Ser o fantasma desta casa.
Hospedeiros
Como saber que era em nós
Esse animal de mansuetude,
Enormidade feita de clemência
E de veludo
E que podia viver por tanto tempo
Bem guardado sob a pele,
Espelho dessas criaturas
Abissais, meio fantásticas,
Que não conhecem a luz.
Que de todos os possíveis
Ficaria essa trilhada
Em que os pés vão sozinhos,
Sábios embrutecidos
De vasculhar entre despojos
Como tem as palmas calejadas
De enfeixar o trigo uma ceifeira,
Como tem o peito crestado
De se dar ao mar um pescador.
Instinto
Porque um dia te chamei
Para sempre me persegues
E já não me estilhaça
O quanto perco
Nem fingir que me despeço
Como se fizesse do silêncio
O véu de um corpo —
Porque de estar contigo
Já não me despeço —
Pode um remanso
Ir me tomando à força,
Ameaçando me chegar à boca,
Infinitamente mais escuro
E raptor, teu beijo é ósculo.