A construção do abismo
Cansado com o presente, disse não ao futuro que lhe aparecia no horizonte. Protestou, cruzou os braços, fez cara de brabo, deixou a barba crescer. Interrompeu a construção da ponte que lhe levaria a algum lugar. Sentou na beirada da obra incompleta, com as pernas suspensas no ar do abismo do nada, e esperou a lua nascer. Acreditava que junto com ela, do mar prateado, surgisse outro destino.
Não veio. Na claridade do luar, viu-se como alguém sem futuro. Procurou um no horóscopo, recorreu aos orixás e classificados. Nada. Orgulhoso demais para reaver seu destino, foi condenado a ser uma dessas almas sem esperança, que perderam o bonde da vida e se transformaram em escravos do presente. Estava no corredor da morte, afundado no sofá do tempo, esperando virar passado.
Já entediado, em frente à televisão, decidiu ser um decadente de verdade. Desceu ao boteco da esquina, achando que talvez assim pudesse justificar o peso da sua decisão. Quando lhe questionassem porque desistira da carreira promissora, o bafo de cachaça seria a resposta mais convincente. Depois da quinta tequila, perguntou a um velho sentado ao balcão o que esperava do futuro.
O sorriso frouxo combinado com o olhar enxaguado da resposta, fizeram ele pedir desculpas. O cheiro azedo da velhice denunciava a falta de tempo para um futuro. O velho disse estar tudo bem e, querendo amenizar o desconforto do bêbado, puxou papo, contando-lhe histórias da juventude. Foi diante das rugas do novo amigo que percebeu seu erro. Olhava para o lado errado.
Puxou na memória alguma coisa relevante para falar ao velho, lembrou da época da faculdade, do colégio, da infância. Falou de cachaças, viagens, mulheres, filmes e livros. Dos últimos três anos, porém, tudo o que encontrou foram duas linhas no currículo. O resto já deveria estar no lixo, aquecendo mendigos ou servindo para limpar janela.
De repente, viu-se na ponte construída com entulhos de segundos e palavras, parado rente ao abismo, encarando seu futuro do pretérito. Deu um passo.