Vi uma fotografia artística da ilha de Fernando de Noronha, em preto e branco, com a lua arrendondando celagem de nuvens. O menos que se podia imaginar, diante dessa paisagem, era um poema de amor, naturalmente a bordo de um transatlântico. Um “Noturno” no piano do salão de festas do navio adequaria o quadro à situação.
Também vi outra fotografia de Fernando de Noronha. Era sob a desolação do sol tropical, rochedos de lava vermelha numa calcinação de greda e resplandecente como um lago de mármore das Mil e uma noites. Os leques dos altos coqueiros mostravam suas abertas ramas verdes e, na costa, um grupo de presidiários, com o traje branco, raiado horizontalmente com franjas azuis, carregavam maletas numa balsa vigiada por soldados com o fuzil em riste. Essa baía onde os homens trabalhavam se chama Bahia dos Cachorros.
A ilha é pequena. Vinte quilômetros quadrados e presídio. O presídio e a igreja com paredes caiadas e dois coqueiros na frente.
Dessa ilha até Pernambuco são 24 horas de viagem pelo mar, isto é, 380 quilômetros. E dessa ilha, como nos relatos de Emilio Salgari, quatro presidiários acabam de fugir. Fugiram na noite de segunda-feira. Numa balsa fabricada com troncos de coqueiros.
A balsa é o meio de navegação mais simples e primitivo. Troncos amarrados entre si com cordas de agave. E em torno desse mastro, debaixo do ardentíssino sol do trópico (é a latitude mais quente do Brasil e na estação de maior calor), quatro homens. Quatro homens joguetes do oceano numa balsa de troncos e o vento inflando as velas feitas de roupas presidiárias.
Fugiram de noite, para interpor entre eles e as ordens de busca 24 horas de vantagem. Algum homem entendido do mar os guia? Quase todos os condenados que fugiram de Caiena se perderam na selva, foram entregues por nativos ou pereceram no inferno verde. Terão o mesmo destino esses fugitivos de Fernando de Noronha?
Aqui não existe o perigo da selva, mas o do oceano devorador. São 380 quilômetros de oceano. É certo que Colombo cruzou o Atlântico num bote, que bem poderia ser equivalente a essa balsa dos fugitivos. A aventura tem sempre ângulos inesperados, e os homens da conquista da América não eram menos imprudentes e ousados do que os quatro presidiários.
As águas do oceano são ricas em peixes comestíveis pescados pelos homens e em peixes que de uma abocanhada cortam em dois um ser humano. Durante o dia, os aventureiros baixarão seus velames para não serem vistos à distância pelos navios que atravessam o oceano nessas longitudes. Possivelmente camuflaram a balsa, revestindo-a de folhagens; durante o dia dormirão sob o disfarce de sua embarcação, que na distância parecerá uma natural ressaca movida pelo oceano. Ao cair da tarde levantarão mastro, içarão as velas, beberão em goles comedidos a água doce numa lata trazida da ilha e, no silêncio da grande planura ondulada, escrutarão o céu em busca das estrelas que indicam a pista, se é que um deles não levou bússola ou o sagaz instinto da terra que se cheira nas emanações do ar.
Tudo é possível e a aventura maravilhosa e terrível, como a de todos aqueles relatos que são gostosos de ler em dias de chuva, junto a uma lâmpada que ilumina o quarto confortável.
As autoridades do presídio já acreditam que esses homens e sua balsa sossobraram. O cronista desta nota, por simpatia pelo instinto de liberdade que conduz à execução de trabalhos sobre-humanos, crê que esses homens estão vivos e que seu desenlace pode chegar a bom termo. Imensas são as costas do Brasil, desmesuradas como nenhuma sobre a terra suas selvas; quatro homens que fogem de um presídio tomando como caminho todos os caminhos da rosa dos ventos que se torvelinham no mar, não são nem menos nem mais empreendedores do que aqueles que, em cascas de nozes, empreendiam a travessia de 11.000 léguas de água e, além disso, nem sabiam aonde iam. Se o oceano se mantém em paz, e Netuno barbudo lança seus gênios na rota desses quatro condenados cujos crimes ignoramos, porém de cuja perigosa audácia temos ampla referência, eles chegarão às costas arenosas, ou a outras costas duras e penhascosas. Chegarão a um areial ou a alguma ponta de bosque da costa do Brasil, essa maravilhosa costa verde garrafa e alaranjada, com cavernas verticais ou baías rosadas. Chegarão... e, então, sim, ninguém haverá de saber mais deles. A topografia do Brasil é vasta, montanhosa, dramática e circunspecta como convém a todas as terras onde a aventura somente é possível mediante o auxílio oportuno do mistério.
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