Ilustração Janio Santos

 

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Andei matutando, nesta segunda-feira chuvosa, aqui no Recife, sobre minhas pretensões de vida. Cheguei à conclusão de que elas estão cada vez menores. Ou seja, quanto mais vou ganhando em dias vividos, menos vou exigindo dos dias que vivo e viverei. Não se trata de desconvencimento, é só mesmo a passagem do tempo, fazendo em mim o seu molde.

 

Vou à agenda, que tenho há tantos anos, com os dias em sequência, as demandas, ocupações. Descubro que estou a cortar coisas, compromissos, eventos, especialmente os sérios. Busco tirar todo o excesso, tudo o que, em outros tempos, seguiria quase na marcha automática, porque muitas vezes somos autômatos e não percebemos.

 

Quando me chamam para algum projeto, pergunto logo sobre o formato, se tem a palavra “reunião” como eixo de trabalho. Em caso positivo, já preparo a saída. Tenho para mim que uma reunião que dure mais de uma hora, já perde o sentido. Participei por algumas semanas de um projeto que indicava algo até bucólico — duas reuniões por mês. Ah, isso é moleza, vamos nessa, foi o que pensei.

 

Bem que tentei. Eram duas reuniões por mês de verdade, mas começando às 14h, terminando às 17h30/18h. E como as pessoas gostam de falar, meu Deus! E como gostam de repetir o que o outro acabou de dizer! E como é importante pedir a palavra mais uma vez! E como é importante ter razão, ter certeza, convencer! E como isso me cansa, me faz pensar no tempo que perdemos dando voltas nos mesmos assuntos, várias vezes no mesmo dia.

 

Não, não. Eu não quero isso. É muito. Quero pouco. Preciso menos de conversas sobre os destinos do mundo e olhar um pouco mais para meu destino. Não quero convencer ninguém de nada. Quero é aprender a escutar melhor as pessoas, ter tempo para encontrar os amigos, isso sim. Foi graças essas pequenas negações, que consegui, ano passado, ler os dois volumes de Guerra e Paz, anotando os lugares onde estava e a data, ao final de cada capítulo. Li me deliciando, deslumbrado, feliz, porque arranjei tempo para fazer aquilo. Ficar em casa, com um abajur aceso, lendo e anotando as coisas do velho Tolstói era como um prêmio que me dava por não jogar fora este bem tão precioso, que é o tempo.

 

Também não quero ter um carro, nem novo nem usado. Quero andar cada vez mais a pé mesmo, como tenho feito, ou de ônibus, nos horários que conheço. Sobretudo, não quero chegar nos lugares dizendo que “o trânsito hoje está insuportável”, “a cidade está parando”, nem brindar os amigos com esses clássicos “passei uma hora e meia na Rosa e Silva”. Não quero pagar IPVA todo ano, nem parcela de carro. Não quero receber cartas me informando de alguma multa por causa de algum deslize. Não quero ficar procurando vaga para estacionar o carro.

 

Vou a pé para muitos lugares. É estranho para muita gente, mas gosto de andar no Recife. Tem muita calçada esburacada, muita poça de lama nesses dias de chuva, mas tenho ainda um certo preparo físico para ver antes, para desviar, para pular. Sobretudo, gosto do ato físico de andar, de não me sentir parado dentro de um carro, impotente. Eu também detesto buzina. Sonho com as ciclovias abertas durante a semana, para pegar minha bicicleta e chegar bem feliz aos lugares mais distantes.

 

Andei pensando em comprar uma casa, um apartamento, mas estou morgando. Está havendo um surto psicótico no mercado imobiliário. Os preços dobram, triplicam, sem que haja uma explicação decente, a não ser a reles especulação. Outro dia, vi que um metro quadrado no Recife já custa mais de R$ 5 mil. Pois o metro quadrado do Recife fique no seu lugar, que fico no meu. Vou comprar, qualquer dia, um pedaço de terra e construir algo simples e bom. Se os preços não baixarem, não tem problema, não compro nada. É possível ser feliz sem casa própria também.

 

Por último, no que me toca escrever, não tenho grandes cobiças. Tudo está absolutamente melhor do que eu imaginei. Enquanto escrevo, me vem um sentimento bom, de ter trabalhado muito, desde os 18 anos. Jamais imaginarei, nem nos maiores sonhos literários, chegar aos 44 anos com cinco livros publicados, dois sendo roteirizados para cinema, muitas alegrias, projetos, leitores. Todos nasceram naturalmente, no fluxo da vida mesmo, sem precisar negociar minha alma com nenhum diabo.

 

Sigo escrevendo com a mesma felicidade, e mesmo que não apareça mais editora interessada em meus textos, que nada mais seja publicado, isso não vai alterar absolutamente minha rotina, minha paixão pelo ato físico e emocional de escrever.

 

Continuarei escrevendo. Custa pouquíssimo. Papel, caneta, uma cadeira, uma mesa, café ao lado (às vezes chá ou chimarrão), alguns livros de apoio, dicionários, um ventilador. Em troca, vivo melhor. Eu seria um péssimo mecânico, um operário deprimido, um motorista ordinário, um ator medíocre, um coveiro triste, um professor da rede pública exausto. Para escrever, admito um egoísmo límpido — preciso muito é de mim.

 

Teria mais coisas para compartilhar, mas está bem ficar por aqui. Afinal, como diz o título da crônica, o que eu quero é pouco.

 

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