Desde cedo, muito cedo, decidi escrever uma obra literária que me permitisse enfrentar a condição humana em toda sua vastidão. Comecei escrevendo contos e historietas, mas sempre investido da condição de crítico, questionando e investigando as obras dos clássicos e dos consagrados. Queria compreender cada palavra, cada frase, cada cena, com a consciência absoluta de quem convive com criaturas e criadores, além de homens e de almas.
Conviver sempre significou estudar. Por isso “estudava” os amigos e as amigas, os irmãos e as irmãs, refletindo sobre a maneira de viver, de se comportar, de enfrentar os pequenos e os grandes problemas da vida. O que se adensou e aumentou quando comecei a ler a obra das grandes almas russas: Dostoiévski, Tolstói, Gógol e Tchekhov, por exemplo. Vieram os instantes de pavor, afeto e alegria. Tremi de susto e de agonia diante das Confissões de Stavróguin ao bispo Tíkhon. Investi no mundo das crianças a partir daquele episódio ao mesmo tempo grotesco e sensível.
Creio mesmo que vem daí o meu interesse pelo incrível mundo da infância ofendida pelas mãos dos adultos. E também pelos adultos seduzidos pelos jovens. Nunca mais pude me livrar deste tema – desafiado e atormentado. Criei, assim, um mundo ficcional em que crianças e crianças, adultos e crianças, adultos e adultos se debatem. Um mundo em que não haveria redenção porque investido de dolorosas atribulações. Um mundo de pecados – sim, o pecado teológico, aquele que contraria a bênção de Deus – e de virtudes, esta espécie de mundo real, palco de todos os enfrentamentos.
Por isso escrevi Pérolas porcas, o romance que estou prestes a publicar, para experimentar a infância do mundo, repassando os principais temas da minha obra, confrontando o sagrado e o profano, perguntando, de repente, pela presença do verdadeiramente humano nas nossas vidas. De forma que não se deve perguntar a partir deste instante: onde se encontra a inocência? Sobretudo isto, onde se encontra a inocência na obra de Raimundo Carrero? Não se trata disso, de inocência ou de malignidade. O homem, transformado em personagem, é um ser único com todas as grandezas e todas as misérias, sem chance alguma de decidir entre uma coisa e outra. Basta verificar neste livro a vida da personagem Doroteia, ela própria capaz de decidir e resolver somente pelo instinto e pela vontade. Digo instinto com uma impressão vaga, muito vaga, que em nada expõe o comportamento humano.
Em uma cena em especial transmito para o leitor o universo em que Doroteia está inserida, sua vida interna:
“Menina, não mais do que dez ou doze anos, Doroteia olhava para os lados e para o teto, para mim e para os outros, dominando o choro no soluço, ninando a mão maltratada, possuída desta mágoa que só as mulheres conhecem no choro. Ventava e a manhã escurecia, escurecia e se iluminava, nessa luta permanente do tempo. Também ali estavam os sentimentos se debatendo. Ela não queria se curvar à dor e não queria, também, demonstrar agonia. Olhava-me e olhava-me, sorria e chorava. Chorava só lágrimas que desciam pelo rosto, mas os olhos permaneciam aflitos e doces de menina afetuosa e bela. Sem dúvida, não podia entender que o seu melhor amigo a espancasse com tanta dureza. Não me reconhecia, tenho certeza, nem poderia reconhecer o menino que tomava banho com ela nas tardes quentes de Salgueiro, quando também levava para passear na Estação do Trem, entre os frutos do sexo e do amor, ou na cumplicidade do roubo de galinhas nos quintais”.
Construir uma obra é carregar na alma uma série de personagens que vão construindo um autor. A Vida, sem dúvida, constrói um homem; mas os personagens constroem um escritor. E, de repente, estão os dois ali unidos – homem e escritor. Não se pode dizer quem é um e outro. Não há separação, mesmo quando o escritor é feito de ficções e quando suas cenas, as suas principais cenas, estão no homem.
Tudo isso significa construir uma obra. Carregá-la na mente e nos ombros, na carne e no sangue. Sem tempo para respirar ou reclamar. Creio mesmo que o universo ficcional de um romancista, por exemplo, passa a ser o seu próprio mundo e suas próprias aspirações, mesmo quando doem e castigam. Sendo assim, a dor e a angústia de Doroteia e de Leo, neste livro, ficam impregnadas na minha carne e no meu sangue.
A construção deste romance obedeceu a um esquema mais ou menos comum na minha obra: abertura dramática seguida de cenas fortes e irônicas, de forma a provocar estranhamento no leitor, carregado de emoção estética e lirismo de maneira alternada. É possível, assim, fazer os personagens se desenvolverem sem cair no erro da explicação, fazendo com que estas cenas se expliquem a si mesmas ou que expliquem os personagens. Seguindo-se este esquema, podemos observar que as cenas iluminam umas às outras, assim como os personagens iluminam-se e iluminam uns aos outros, até que tudo resulte numa completa compreensão do que se está a dizer.
Não se trata da velha questão e personagens em busca de um ator, conforme Pirandello, mas de personagens que comportam um autor desde que nasceram e vão nascendo, de acordo com a obra.
Não é verdade, porém, que o personagem é o autor. O personagem vai se formando a partir da experiência do ator, mas conforme as necessidades cênicas. Costuma-se dizer o contrário. Mas a experiência do autor é sensorial, não advinda da experiência de vida. A vida contribui para a criação da obra através do sentimento e não a partir da realidade.
É assim, por exemplo, que entendo a experiência de Stavroguin na obra de Dostoiévski. Em Os possessos é, possivelmente, o personagem mais inquietante e mais cruel da obra do grande escritor russo. O que não significa que Dostoiévski era assim. Não se pode jamais condenar um autor pelas ações dos seus personagens, nem pela história que desenvolve.