Com sua edição de 2015, a Flip fechou a Gestalt do seu fascínio pelas figuras de frente do modernismo brasileiro. A saber: Manuel Bandeira, Oswald e, agora, Mario de Andrade. Curiosamente, o inferior Oswald foi homenageado na frente do seu amigo-rival de mesmo sobrenome (na mesa de abertura dessa edição, inclusive, José Miguel Wisnik chegou a dizer que Oswald havia deixado uma grande obra não apenas escrita, mas também “vivida”. Ora pois...). Ainda que tardia, a homenagem a Mario chega num momento propício para as polarizações intelectuais e ideológicas, e para os Eduardos Cunhas e pastores-gestores enfrentados hoje pelo Brasil. Mario foi uma grande confusão, um homem que criou revoluções para desmontá-las em seguida, que se disse múltiplo e que propôs um caminhar junto à multidão. Não era apenas um observador. Não era (não é) possível apenas observar.
A mesa de abertura da Flip, realizada na noite desta quarta-feira, contou com a argentina Beatriz Sarlo, o biógrafo Eduardo Jardim e a especialista em literatura erótica Eliane Robert Moraes, problematizando as “margens” do pensamento de Mario, que acabam sendo tão centrais. Especialista em Borges, Sarlo destacou algumas das diferenças entre os modernismos brasileiro e argentino. Plural, Mario se interessou pela música popular e, como viajante, procurou conhecer um Brasil profundo, enquanto o olhar portenho se voltava ainda e, de sobremaneira, pelo fascínio das metrópoles europeias. “Mario viajou pela Amazônia, uma expedição que um Borges enxergaria como extravagante. E os argentinos, naquela época, jamais iriam se interessar pela música popular. O tango era para ser ouvido; não estudado. Borges não gostava de tango”, pontuou.
Eliane Robert Moraes lançou mão do erotismo para destacar o quanto o trabalho de Mario muitas vezes era o de encobrir um buraco com outro. O mecanismo do retorno do recalcado. Destacou O poema Girassol da madrugada, que lista/encobre “amores eternos”. O autor começa falando que seu primeiro amor eterno foi uma moça donzela, para em seguida lançar palavras enigmáticas como “eclipse”, “cataclisma” e “boi que fala”. A lista que, supostamente, revelaria uma relação gay foi abortada por sugestão do amigo Manuel Bandeira. Mario procurou por três anos uma forma de completar o poema e de cobrir o buraco. Encontrou palavras que escondiam, mas ainda assim revelavam. “No eclipse é possível ver alguma coisa, ainda que boa parte esteja encoberta”, observou Moraes, para depois completar “o buraco, como Mario deixou claro, era mais embaixo”. E essa localização geográfica, quem diria, acaba por pautar boa parte das discussões hoje no Brasil.
Jardim, autor da recente biografia de Mario, ao tentar, entre tosses, enumerar as várias fases vividas do modernista, durante a leitura do texto A meditação sobre o Tietê, foi interrompido por um “cosplay” do homenageado. O ator Pascoal da Conceição subiu à Tenda dos Autores (QG dos debates) com rosas brancas nas mãos recitando poemas de Mario para uma plateia que não sabia se aquilo havia sido combinado ou não. Não havia. De um lado, Jardim tossia. Do outro, o ator recitava. E o público aplaudia. O momento não-sei-o-que-fazer chegou ao fim com a intervenção do curador da Flip Paulo Werneck, chamado ao palco pelo biógrafo. Meio sem jeito, Werneck perguntou se o biógrafo gostaria de continuar ou se ele já havia perdido o fio da meada. Havia perdido.
“Eu disse que viria”, gritou o ator, afirmando que o curador não havia respondido aos seus e-mails. Werneck agradeceu ao performer (fazer o quê?), aos debatedores e frisou que surpresas são bem-vindas, ÀS VEZES, na Flip. Sem dúvida, uma das melhores mesas de abertura dos últimos anos, que na edição passada começou morna-morna com um debate (nada literário) sobre Millôr.
Literatura tem dessas coisas, dessas surpresas, desses cataclismas, desses carnavais.