Castello OUT16 A

 

Leituras que arrastam leituras, páginas que se desdobram, em um desfiladeiro sem fim. Nenhum método, nenhuma teoria, nenhum “projeto”. Tudo muito distante de qualquer rigor. Nenhuma direção fixa, nenhum “objetivo”. Nada parecido. Só o prazer de ler sem parar e, sem parar, entregando-me ao sabor das palavras, misturando, até que se dissolvam uma na outra, literatura e vida. É como gosto de ler. Assim leio agora a crítica de arte de Manuel Bandeira.

Tenho diante de mim Crítica de artes, livro de Bandeira recém-lançado pela Global Editora. O pequeno livro – uma seleção de apenas quatro escritos – me chega por acaso, enviado gentilmente pelo editor. Sempre por acaso (repetirei essa palavra mil vezes, será inevitável), começo minha leitura pelo último dos textos, um breve ensaio dedicado ao pianista, maestro e compositor erudito Francisco Mignone (1897-1986).

A crítica assinada por Bandeira é, na verdade – novo arrastão, imitando as avalanches – a simples transcrição de uma palestra que o poeta realizou no Teatro Municipal do Rio, no ano de 1955. Mignone tinha, portanto, 58 anos. O poeta, cuja fala se transforma em escrita, se lamenta que Mário de Andrade – falecido em 1945 – não estivesse mais vivo. “Quem eu queria falando aqui, em meu lugar, era aquele que, se estivesse vivo, completaria ontem 62 anos”, inicia. Já que Mário não pode mais falar, Bandeira fala em seu lugar. Fala e depois escreve.

Não só escreve, mas – pulando para fora de si mesmo, em novo salto criativo – transcreve um lendário texto de Mignone, que o compositor batizou de A parte do anjo. Nele, o músico trata das diferenças entre vaidade e orgulho. Detenho-me, espantado, no que ele diz. “A vaidade me faz marcar uma corrida de 100 metros, que eu já sei de antemão que posso correr, corro, venço e a vaidade se satisfaz, pequenina”. Há, porém, que distinguir a vaidade do orgulho: “O orgulho não, é audacioso e me faz marcar uma corrida de quilômetro, que eu ainda não sei se poderei correr, corro e só consigo alcançar 600 metros”.

Mostra Mignone que o orgulho, ao contrário da vaidade, leva à superação. Insatisfeito com seus 600 metros, o atleta insiste em correr mais. Chega a 620. Depois a 720. E continua correndo. Em vez de se deter, como na vaidade, o orgulho nos empurra para frente. O orgulho está sempre misturado à insatisfação. A algo que nunca se conclui - ainda que as marcas, ou “objetivos”, sejam ultrapassados. Está ligado ao “sem fim”.

É com orgulho que ele escreve, não com vaidade. A vaidade só nos ilude e só nos leva a parar, falsamente satisfeitos. O orgulho, ao contrário, nos joga de cara no chão - nos leva a encarar nossas limitações e nosso trabalho sempre incompleto. Em outro ensaio breve, agora dedicado a Cândido Portinari, Bandeira se detém no ano de 1918, quando o jovem pintor, sozinho e trazendo consigo apenas “a certeza da vocação”, desceu de Brodowski, cidade do interior paulista onde nasceu, para o Rio de Janeiro, para iniciar seu aprendizado.

O que levava consigo Portinari? Uma “obra”? Ou, ao contrário, a única certeza do longo caminho (orgulho) ainda a percorrer? Foi porque tinha um caminho a trilhar que o jovem artista se mudou para o Rio. É só porque conseguem deixar a vaidade de lado que os poetas – como Bandeira, com seus mais de30 livros publicados – nunca deixam de escrever e escrever. A consagração internacional de Portinari só veio em 1935, com a menção honrosa recebida pela tela Café no Instituto Carnegie, dos EUA. Essa demora nunca o fez parar.

E ainda assim (orgulho) o grande prêmio foi apenas e só mais um impulso, que o levou a pintar e a pintar, até sua morte, em 1962. O que interessa, portanto, é o impulso – é o apetite, é a fome de fazer. É a ação – da qual as obras são apenas um resto. Assim a arte se conecta com a vida: não através da obra morta, mas do ato vivo. Em resumo: é da própria vida que a arte se alimenta.

Em seu prefácio à breve antologia de Bandeira, o apresentador Carlos Newton Júnior recorda um trecho de uma entrevista do poeta em que ele diz: “A música não é para mim um simples passatempo: é uma necessidade. Privado dela me sinto infeliz de todo”. O orgulho – que o Houaiss define como o “sentimento de prazer com a própria honra” – é também um elemento básico não só na vida dos artistas, mas de qualquer homem. Ainda mais nos tempos sombrios em que, no Brasil, se hoje, somos obrigados a viver.

A poesia (a arte) não é um passatempo, como querem fazer crer os novos mercadores e marqueteiros do século 21. Não é “a maior diversão”, como se diz, com uma alegria tola, a respeito do cinema. A arte é um desfiladeiro, que nos arrasta – como, de resto, os textos fazem com seus autores. Também os livros fazem o mesmo com seus impotentes leitores. Há algo que pulsa, que está muito além do mercado, dos prêmios e das celebrações. Muito além das vantagens. É disso – desse pulsar incessante e sem objeto – que o orgulho se alimenta.

Para me afastar de um livro, preciso me agarrar a outro. Sobre minha mesa de trabalho encontro, então, os Exercícios de estilo, de Raymond Queneau – em tradução de Luiz Rezende para a editora Imago. É um livro assombroso, uma prova viva de que a criação não se esgota, não se conclui, nunca se basta. A partir de uma pequena e banal história de apenas um parágrafo, Queneau – fundador do célebre grupo experimental Oulipo, a Oficina de Literatura Potencial surgida em Paris nos anos 1960 - entrega-se a um interminável exercício de criação. A mesma história é recontada 99 vezes, a cada vez em um estilo, como se o autor se desdobrasse em 100 – em mil! – faces possíveis. E de fato se desdobra.

A célebre experiência de Queneau mostra que a criação é interminável. Em outras palavras: que a transformação é a regra do humano, e não a exceção. Também as leituras: comecei por Bandeira, fui a Mignone, a Portinari, voltei a Bandeira, pulei para Queneau e agora estou aqui, ainda ignorante de meu destino. Livros que se conectam. Escritos que se propagam e se multiplicam _ em uma aventura sem rumo. Diante deles, toda vaidade se torna ridícula. E o único orgulho possível é o de, apesar de todas as dúvidas, tendo apenas a cegueira como alimento, continuar e continuar.