Castello jun19 Hana Luzia

 

A brutalidade e o ódio se espalham. Por todos os lados, cenas de agressão, de bestialidade, de ignorância. A realidade se torna tóxica. Seja qual for o lado desde o qual a observamos, ela se mostra, cada vez mais, inóspita e rude. Irrespirável. Busco uma palavra que sintetize nosso tempo. Em uma conferência pronunciada em Viena no distante ano de 1937, o escritor austríaco Robert Musil (1880-1942) me oferece, enfim, uma palavra que talvez possa dar conta do que vivemos. “Estupidez” – Musil me sugere. Autor do extraordinário O homem sem qualidades, livro publicado entre 1930 e 1943, ele foi um escritor que valorizava as palavras precisas. Estupidez: dessa odiosa palavra tenho que partir, eu decido.

Corro aflito ao Houaiss, que define a estupidez como “incivilidade, indelicadeza, grosseria, descortesia”. Parece muito pouco, parece ainda insuficiente, mas é a palavra que tenho. Da estupidez é o título da conferência de Musil, transformada em 1994, pela editora Relógio D’Água, de Lisboa, em um pequeno, mas precioso, ensaio. Musil adverte seus ouvintes, logo de saída, a respeito dos perigos em que a palavra o lança: “Quem quer que se decida a falar da estupidez corre hoje o risco de ser insultado: podem acusá-lo de pretensiosismo, ou de querer perturbar o curso da evolução histórica”. A advertência também me serve, mas não se pode escrever sem correr risco algum.

Alerta logo Musil — para quem na arte tudo se decidia — que a falta de sentido artístico de um povo “não se exprime apenas nas más épocas e sob forma grosseira, mas também nas boas e sob todas as formas”. Pensa, é claro, na estupidez, que se esconde sob uma grande variedade de máscaras.”Aquilo que nós chamamos de bel esprit (mente brilhante) poderia também ser qualificado de bela estupidez”, exemplifica. É preciso aceitar que a estupidez também pode ser bela, ou, pelo menos, em dadas circunstâncias, pode ser vista como bela. “Entre a repressão ou a proibição e os doutorados honoris causa (...) há apenas uma diferença de grau”, ironiza Musil, que observava com grande suspeita os títulos e as comendas.

Não é uma tarefa fácil definir a estupidez: eis uma palavra que, quase sempre, se transforma em uma armadilha. Podemos usá-la nas mais variadas circunstâncias e dentro das mais diversas perspectivas. Em si, ela talvez nada signifique – e isso é, logo, o mais chocante. O próprio Musil se adianta em dizer: “Prefiro, pois, confessar desde já a minha fraqueza diante do problema da estupidez: ignoro o que seja”. Trata-se de uma palavra que se assemelha a um pântano. Ou talvez ao barro: pode ser moldada em qualquer forma e por quaisquer mãos. De um extremo a outro da sociedade, todos acusam os adversários de “estúpidos”. A palavra se esvazia. “Quem quiser falar da estupidez (...) deve partir da hipótese de que ele próprio não é estúpido”, prossegue. “Quer dizer, proclamar que se julga inteligente, ainda que isso passe geralmente por um sinal de estupidez”. O círculo se fecha e a palavra sufoca, tornando-se apenas uma ofensa, ou um xingamento, que serve para tudo, mas, no fim, não serve para nada.

Acontece que este é justamente o ponto: pela via da estupidez não se chega a lugar algum. O barulho cresce, os nervos se esgarçam, os corações aceleram – mas a verdade é que nada se move. Tudo se torna insuportável, sem que a realidade se altere. O parentesco entre a vaidade e a estupidez, por exemplo, é direto. Ela pode ser camuflar em qualquer brecha. Seja como for, a estupidez conduz inevitavelmente à brutalidade. Recorda Musil do reverendo alemão Johann Erdmann, para quem a brutalidade é “a estupidez em ação”. Pela via da estupidez só chegamos ao ataque selvagem. Também não se deve reduzir a estupidez à incapacidade. Fazer isso, ele argumenta, “é uma das razões que explicam que a acusação recíproca de estupidez esteja hoje tão espalhada”. Prossegue: “Somos inclinados a classificar quase tudo o que não nos convém de estúpido”. Mais uma vez: agindo assim, não saímos do lugar. Prefere Musil pensar que a idéia de estupidez conduz não ao deboche, ou à ofensa, mas a uma “tendência para a fuga ou para atos de destruição desprovidos de sentido”.

Talvez aqui seja possível, enfim, pisar um chão firme: a estupidez se relaciona com a falta de sentido. Não existem argumentos, tampouco pontos de vista, ou razões, não existem provas – tudo o que importa é a acusação. Basta dar uma olhada em volta para verificar o quanto isso é verdadeiro. A estupidez prolifera, em especial, durante “as épocas em que se aprecia, particularmente, a energia e o punho”. Ela é tão violenta, mas também tão gratuita quanto um soco desferido por simples impulso, ou por um ódio selvagem. O pior é que a estupidez pode se esconder sob os mais diversos semblantes. “Não existe um único pensamento importante que a estupidez não saiba imediatamente utilizar; pode mover-se em todas as direções e assumir todas as aparências da verdade”. A estupidez é uma peste e, como tal, só leva ao extermínio.

No fim das contas, não interessa saber o que ela é, mas, sim, o que ela produz. Basta olhar em torno para verificar que a estupidez gera um mundo convulsionado, cada vez mais instável e incompreensível, ou melhor, desinteressado em qualquer tipo de compreensão. Ao nos observar nos espelhos, é bom não deixar de lado nossa própria estupidez, que se manifesta em detalhes irrelevantes, ou sórdidos. Olhando de relance, pode não parecer nada, mas pode estar ali o ponto de partida de uma explosão. Reconhece Musil que “todos nós somos, por vezes, estúpidos; por vezes, também, somos constrangidos a agir cegamente ou semicegamente, sem o que o mundo se deteria”. O reconhecimento de nossos aspectos selvagens, que datam desde o homem primitivo, não é um argumento, porém, a favor da estupidez. Isso seria naturalizá-la, e a partir daí qualquer brutalidade poderia se justificar. “Todos nós somos perversos e estúpidos”, reconhece Musil, antes que o julguem um estúpido esnobe. Ser humano consiste em manter os erros e as insuficiências dentro de certos limites. Apertar os freios que seguram o monstro que levamos dentro de nós. Ainda assim, o principal está sempre em outra parte.