Castello Eduardo Azeredo mar20

 

Em meio à realidade convulsa (e também estática) em que vivemos, na qual o acúmulo de choques, em vez de nos mover, nos paralisa, procuro na literatura pontos de apoio, espelhos, faróis para me amparar. Encontro um preciso aliado em A autoestrada do sul, conto que Julio Cortázar publicou no ano de 1966. O relato abre seu famoso livro Todos os fogos o fogo, que releio na edição brasileira da Civilização Brasileira, com tradução de Glória Rodrigues.

Assombra-me, cada dia mais, o imobilismo que nos cerca. Os desastres se acumulam, mas uma estranha anestesia nos impede de esboçar qualquer reação. Pior ainda: as precárias reações que esboçamos servem para muito pouco. Não há como não pensar no brutal engarrafamento na autoestrada do sul e em suas seis filas de carros que enfrentam a viagem de volta a Paris – tema do relato de Cortázar.

A imobilidade os domina. “Qualquer pessoa poderia olhar no relógio, mas era como se esse tempo, amarrado ao pulso direito ou a bip bip do rádio, medisse outra coisa fora do tempo”, descreve o escritor argentino. Assim também nos sentimos: expulsos do tempo, banidos da História, como se um grande congestionamento nos impedisse de viver e de avançar. E até de pensar.

Nesse “tempo fora do tempo”, prossegue Cortázar, “nunca se sabe em que momento os automóveis da frente recomeçarão a marchar”. Nossa situação talvez ainda seja pior do que a dos franceses que regressam a Paris: já não sabemos, nem mesmo, qual é nosso destino. No fundo do poço, asfixiados, limitamo-nos a nos debater: “O calor de agosto crescia, […] tornando a imobilidade cada vez mais enervante”. Estamos em um agosto eterno, agourento, intolerável.

Em meio à desesperança, nos perguntamos, afinal, onde erramos. São tantas as respostas! Sejam quais forem, apontam para algum grande erro — um momento fatal em que todos falhamos. “Ninguém duvidava de que um acidente muito grave tivesse acontecido naquela área, única explicação para aquela lentidão incrível”. Nessa busca da origem, desesperados, uns acusam os outros. Fala-se na necessidade de “autocrítica” — mas ela não pode vir a ser apenas uma autoflagelação? É o momento de avançar, não de se lamentar. Mas como avançar se a realidade – como a autoestrada do sul – parece congelada?

Nesse impasse, temos, cada vez mais, a sensação de que o futuro nunca chegará. Escreve Cortázar: “O entardecer não chegava nunca, a vibração do sol sobre as pistas e as carrocerias dilatava a vertigem até a náusea”. Hoje estamos assim: paralisados e enojados. Olhamos para o futuro e só vemos o insuportável. Asfixiados, resistimos, mal e mal, sobre a autopista que ferve.

Tentamos explicações, esboçamos projetos, reações. Mas como traçar um caminho em uma realidade que se baseia na mentira e na falsificação? Também na autoestrada para Paris, circulam boatos, constroem-se hipóteses, fala-se por falar. Haveria uma batida com três mortos e um menino ferido. Haveria a capotagem de um ônibus de Orly. Como ter certeza de que essas explicações não passam de miragens? “O engenheiro estava certo de que quase tudo era falso”. Em uma era fake, em que acreditar?

Prossegue Cortázar: “À parte esses avanços mínimos, era tão pouco o que se podia fazer”. Não é assim que nos sentimos, lentos e impotentes? Não é insuportável a sensação de que nossos pequenos atos não produzem mais qualquer repercussão? Desiludidos, nos apegamos a insignificâncias. “Pela manhã avançou-se muito pouco, mas o suficiente para dar a esperança de que nessa tarde se abriria o caminho para Paris”. Vivemos assim, de pequenas, quase fantasiosas, esperanças. Ilusões. No fundo, guardamos a certeza triste de que o caminho para a nossa Paris nem tão cedo se abrirá. Chegará o dia, mas quando?

A realidade começa a impor suas limitações. Na autoestrada para a capital, agora falta água. Para a maioria, começa a faltar também coragem. Muitos se salvam pelo alheamento. O “homem do Caravelle”, por exemplo, narra Cortázar, se mantém “alheio a todas as atividades”. Pode ser uma estratégia: fingir que nada está acontecendo. Tantos hoje a adotam. O preço a ser pago lá na frente, contudo, é bem alto. Também a fantasia começa a ocupar as mentes engarrafadas. “Surgiam hipóteses, criava-se um folclore para lutar contra a inação”. Leiam o noticiário da imprensa: não é das figuras e declarações folclóricas, embora tristes, que as reportagens se alimentam?

Nos subterrâneos do desespero, destila-se o ódio. Os granjeiros que vivem às margens da autoestrada, por exemplo, cansados de tantas solicitações e de tanta confusão, passam a agredir os motoristas. Ninguém consegue mais pensar, muito menos dialogar. Os próprios motoristas não podem mais se entender. “Era difícil reunir-se para discutir: fazia tanto frio que ninguém abandonava os automóveis a não ser por motivo de força maior”. Mas o que, em meio a tanto desencanto, seria uma “força maior”? O que, ainda hoje, é capaz de nos mobilizar? Levamos um soco por dia, mas continuamos parados. Mortos?

Sufocados pelo congestionamento, os motoristas da autoestrada do sul não sabem mais onde estão. Não têm muita certeza, nem mesmo, a respeito do que veem. “Talvez fosse uma cidade, mas as névoas da manhã não permitiam enxergar nem a vinte metros”. Inevitável lembrar, aqui, do Ensaio sobre a cegueira, grande romance de José Saramago. A cegueira se espalha, como uma peste. Fica cada dia mais difícil se mover. A moça do Dauphine ainda vislumbra uma cidade. São sinais – mas de que?

O submundo se alastra. A lei, aos poucos, perde não só o significado, mas a importância. Ninguém se importa com nada. “Tudo se resumia em saber quanto tempo isso ia durar”. Aos poucos, cria-se uma falsa impressão de realidade. A realidade passa a ser aquela paralisia. A adversidade se torna normal. Por que aceitamos as piores coisas? “Nada mais se podia fazer a não ser entregar-se à marcha, adaptar-se mecanicamente à velocidade dos automóveis em redor, não pensar”, descreve Cortázar, como se estivesse hoje entre nós. E não estará?