Castello Hana Luzia junho2020

 

Setenta e três anos depois de seu lançamento, um livro renasce e se agiganta: A peste, de Albert Camus (1913-1960), escrito logo depois do fim da ocupação da França pelos nazistas. Quando lançou A peste, Camus tinha 34 anos de idade. Desde então, o romance foi lido, sobretudo, como uma espantosa alegoria do extermínio dos judeus promovido por Adolf Hitler. A metáfora — ainda mais no presente doentio em que vivemos — é, mais que nunca, atual. Agora, porém, com o surgimento da pandemia do Covid-19, ele se torna, também, uma espantosa antecipação do futuro. Quase toda a desgraça que sobre nós se abate está em A peste. A literatura afirma, assim, um duplo poder: não só o de capturar os horrores da história, mas também o de antecipar os flagelos que estão por vir.

O relato da epidemia que se espalha pela cidade de Oran, na Argélia francesa, nos anos 1940 guarda, de fato, um presságio assombroso. Ali estão, uma a uma, as aflições que nos atormentam. Quando os ratos da cidade começam a aparecer mortos, empilhados pelos becos e pelas escadas, os habitantes se assustam, mas se recusam a pensar no que está por vir. Só a morte do porteiro Michel transforma a surpresa em pânico. Só depois de muita resistência para aceitar os fatos, a palavra “peste” é pronunciada, pela primeira vez, pelo médico Bernard Rieux — personagem central do livro.

Constata o narrador: “Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos”. Só depois de uma feroz luta íntima conseguimos admitir que a catástrofe ultrapassa — mais que isso, é absolutamente indiferente — o ser humano. Diante do flagelo, que é errático, selvagem e sem explicação, nossos valores humanos se esfarelam. A peste, mostra Camus, desmonta o humanismo. Em definitivo: não somos o centro do universo. Também os habitantes de Oran “julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos”. Não passamos de pulgas — como as que proliferam nos ratos doentes da cidade. Também nossa liberdade — nosso valor supremo — tem um limite: nossa humanidade.

Os debates em torno da peste se tornam acalorados. Não chegam a nada, mas, em uma discussão com o prefeito da cidade, o velho Castel — que trabalha na criação de um soro contra a epidemia — resume: “O importante não é que esta maneira de argumentar seja boa, mas que ela nos obrigue a refletir”. Aqui também, no fracasso do pensamento, exibem-se, mais uma vez, os limites do humano. Devemos seguir em frente, insistir e lutar, mas só podemos ir até certo ponto. Quando as portas de Oran se fecham e a cidade se isola do mundo, antecipando uma reclusão que também nós agora vivemos, os fatos se sobrepõem aos argumentos. A peste se torna exílio, e este exílio aponta não só para uma grande solidão, mas para as ásperas fronteiras de nossos desejos. Por mais que desejemos, não podemos ir além da catástrofe. Estamos exiliados de nosso próprio destino.

Quando os doentes começam a ser levados para os hospitais, Bernard Rieux passa a ouvir um mesmo apelo: “Piedade, doutor”. Os pedidos, aflitos e carregados de emoção, são, porém, inúteis. “É evidente que ele tinha piedade. Mas isso não adiantava de nada”. Os sentimentos perdem sua eficácia — os fatos a eles se sobrepõem. A luta contra a peste é a nova forma do destino. Tudo o que havia antes dela desaparece. Sabe o doutor Rieux que terá que combater até o fim, mas que seu combate está delimitado pela força da catástrofe. Sem preâmbulos, o amigo Jean Tarrou o adverte: “Dentro de quinze dias ou um mês, o senhor já não terá aqui qualquer utilidade; estará superado pelos acontecimentos”. A calamidade — como um meteoro que, de repente, despenca sobre a Terra — ultrapassa o humano. Ainda assim, o doutor Rieux não cederá seu jaleco aos coveiros e continuará a batalhar. O humano é isso: ser mais do que se é, ainda que essa ultrapassagem não sirva para nada.

Em um diálogo com o padre Paneloux, que vê a peste como um castigo, o médico é enfático: “É preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste”. Ainda hoje, quantos loucos bradam, entre nós, que a pandemia não é nada? Pego durante uma visita de trabalho a Oran, o jornalista Raymond Rambert faz tudo o que pode para fugir da cidade. “Alguns, como Rambert, chegavam até a imaginar, como se vê, que ainda agiam como homens livres, que ainda podiam escolher”. A mesma ilusão acomete aqueles que, em plena pandemia, exigem um retorno à “vida normal”. Nega-se, assim, a força implacável do real: “Já não havia, então, destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados por todos”. Por estranho que pareça, o flagelo traz uma inesperada iluminação: sempre estivemos todos juntos. Para se consolar, Rambert repete uma frase tola, embora verdadeira: “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu”.

No isolamento da peste, desaparecem primeiro a imaginação e, logo depois, a memória. O futuro e o passado somem — o flagelo nos prende a um presente contínuo e aterrorizante. Aos poucos, nos anestesiamos. “Ninguém mais, entre nós, tinha grandes sentimentos. Mas todos experimentávamos sentimentos monótonos.” Mesmo com o coração na mão, é preciso aliviar os sintomas, acompanhar a agonia e enterrar os mortos. Diante dos gráficos e estatísticas que transformam a peste em números, constata Jean Tarrou, “a única coisa que nos resta é a contabilidade”. A epidemia nos transforma em cifras. Contudo, sob a máscara obscura dos números, a vida resiste. A agonia e morte do menino Philippe, filho do juiz Othon, rompe a frieza oficial. “A boca abriu-se e, quase imediatamente, emitiu um único grito contínuo que a respiração mal modulava”. O grito de Philippe, inútil e desesperado, carrega o humano, que resiste mesmo quando tudo se perdeu. Nesse ponto, é o padre Paneloux quem melhor define: “Isso é revoltante, pois ultrapassa a nossa compreensão. Mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender”. Da catástrofe, para além do futuro e da esperança, resta a vida que insiste em gritar.