Castello Vitor Fugita dez.22

 

Chego ao mercado para comprar frutas. Sentada contra a grade do portão, uma velha muito magra, mas com olhar altivo, me pergunta: “O senhor pode me ajudar?” Evito encará-la. Fujo. Dois passos à frente, contudo, lhe digo: “Na saída, lhe dou alguma coisa”.

Enquanto escolho as tangerinas, afastando as amassadas e murchas, ocorre-me o número incontável de pessoas que, por preguiça, por arrogância, por empáfia, eu já descartei. Pessoas que simplesmente me recusei a ver. Repeti o padrão com a velha. No caixa, ao fazer o pagamento, separo no bolso uma nota de 20 reais.

No portão de saída, reencontro a velha. Ela está na mesma posição. Não me olha, não me diz nada – mas eu sei que me espera. Estendo a mão e lhe passo a nota de 20. “Vê se almoça alguma coisa”, ordeno. Dou-lhe o dinheiro que prometi, mas, para garantir minha superioridade, lhe digo – determino – como deve usá-lo. Minha doação é uma ordem.

“Preciso lhe mostrar uma coisa”, a velha sussurra. O que será? Um atestado médico, uma ferida purulenta, alguma cicatriz que justifique seu desamparo? “Posso acompanhá-lo um pouco?” Não respondo. A velha me desarma. Ao se erguer, ainda se oferece para levar minha sacola. Recuso. Sou um cavalheiro. Sou um cínico.

Caminhamos. Sua companhia me incomoda. Agora que ela está de pé, percebo que, apesar da magreza, é bem alta. É cabeluda. Seus dentes, inteiros, brilham. “Minha senhora”, eu resmungo. Acontece que uso uma máscara – só entro em mercados com máscaras descartáveis – e ela não me ouve. O que me salva, pois eu não sei mesmo o que pretendo dizer.

Seguimos em silêncio até que, no meio do quarteirão, ela para e me diz: “É aqui que passo as noites”. Estamos diante de um muro muito alto. Um paredão tosco, embolorado, malcuidado, de uma casa que talvez esteja desabitada. “Aqui ninguém mexe comigo”, ela explica.

Por que a velha me mostra o muro? O que tenho a ver com ele? “Aquela frase ali fui eu quem escrevi”, ela aponta. Só agora noto que, bem no alto, rabiscada a carvão, está escrito: “Só eu fiz o que fiz”. É a senha para que eu lhe pergunte, afinal, que diabos fez – que desgraça a lançou nas ruas. Mas não, não quero esticar a conversa. Quero fugir.

Não sei por quê, no breve silêncio em que somos lançados, ali diante do muro escuro com sua frase medonha, eu me lembro de O muro, o romance de Sartre que li na juventude. A história de três condenados que, detidos em seu cárcere, esperam a morte anunciada para a manhã seguinte. Esperam o irremediável. O que ainda espera a velha?

O que espera aquela mulher a quem a vida nada mais promete? O que fez de tão ofensivo, o que a degradou? O muro é sua cela, eu agora entendo. Ao me levar até ele, é algo muito íntimo que me apresenta. É um segredo. Sei que os míseros 20 reais não pagam a revelação que agora me oferece. Não pagam o segredo que, com um olhar quase de menina, ela me entrega.

Continuo a ser o homem grosseiro que sou: “Está bem. Li a frase. Mas e daí?” Com meu desprezo, luto para me afastar. Sei que a frase lhe é preciosa, porque agora ela a repete em voz alta, várias vezes, e cada vez que repete abre um sorriso mais doce. A cena é deplorável. A velha me entrega seu tesouro e eu lhe devolvo meu ódio.

Por algum motivo, não consigo lhe dar as costas e seguir meu caminho. Atrapalhado com as palavras que me prendem – “Só eu fiz o que fiz” –, me sinto agora, como em Sartre, um prisioneiro do muro. Para ganhar tempo, lhe ofereço uma tangerina. Ela escolhe uma e eu, para enfatizar que sou bom, e que sou superior porque sou bom, lhe entrego outra. “Fique com as duas”, digo, com a generosidade das serpentes.

Volto a pensar no romance de Sartre, em busca de algum paralelo que me salve. Mas eu o li aos 20 anos e já não me lembro de quase nada. Só agora percebo que a velha se sentou contra o muro e olha para o céu. É um raro dia de céu azul em Curitiba. Pássaros sobrevoam nossas cabeças. Um vento macio nos acaricia. A velha está em êxtase.

A observação dessa cena me desperta ainda mais pavor. Com sua leveza, a velha desmascara minha indiferença. No desamparo, ela reage. E eu? O que, afinal, faço ali parado? “Eu posso lhe contar uma história”, ela murmura. Contra a luz do sol, consigo ver melhor sua pele maltratada e a roupa suja. Sua penúria, enfim, se desvela e eu já não posso negá-la mais.

“O senhor é um homem bondoso”, ela diz, para meu horror. Com a rapidez dos sonhos, ela me envolve em uma imagem generosa, que não me pertence. Tudo o que lhe dou é meu desprezo, mas ela o recebe como uma dádiva.

Aos poucos, começo a perceber o sujeito ridículo que sou. Por conta dos 20 reais, miseráveis 20 reais, passei a me ver, mais ainda, como um homem de bem. O “homem bondoso” de que ela fala. De início, quase acreditei na mentira nojenta. Não passo de um velho ranzinza e a ajudei só para me defender.

Os 20 reais me serviram de escudo. Com eles, comprei sua distância, afastei-me do que não suportava ver. E, no entanto, agora estamos ainda mais próximos. Agora dividimos a mesma cela.

“Pode contar a história”, eu digo, por falsa delicadeza. Aumenta a raiva que sinto de mim. Indiferente a meus temores, a velha começa: “Já notou que esse muro parece uma marina?” Nos fins de tarde, costuma se sentar diante dele. Para nada, só para olhá-lo. Foi assim que descobriu sutis azuis, ranhuras que se parecem com ondas e até um buraco que lhe lembra um navio.

Olhando, eu também, para o muro, nada vejo. Só me lembro de um amigo, bem mais velho que eu, com quem, um dia, reclamei do peso da idade. “Pare com isso”, ele me disse. “Você, que tem 70 anos, ainda tem um futuro”. Suspirou e prosseguiu: “Já eu, quando olho para a frente, só vejo um muro”.

Era um esnobe. Vivia de rendas. Afundava no tédio. Já a velha, que nada tem, consegue divisar no muro um futuro. Da argamassa tosca, ela esboça um sonho. Não é do muro sujo e comum, é de si mesma que, ainda que na miséria, a velha arranca alguma alegria. Quanto a mim, agarrado às tangerinas e a meu medo, limito-me a fugir.