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Somos feitos de pedaços.

Às vezes até duvidamos que apenas um nome é suficiente para decifrar nossos caminhos. Ainda mais quando se trata de um escritor em cujo livro não é fácil perceber onde se inicia o autor e onde finda o personagem.

O romance de Júlio de Almeida, Vaicomdeus, SARL., editado pela Caminho/LEYA (Lisboa, 2017), é assim. Por detrás do Júlio escritor há “outros” Júlios com o mesmo sobrenome.

Um Júlio, que são três.

O PRIMEIRO JÚLIO, O ESCRITOR.

O primeiro Júlio é o autor de Vaicomdeus, SARL. SARL significa sociedade anônima de responsabilidade limitada. Título um tanto irônico para um livro que tem Angola como cenário. Metáfora de um país cujos percalços vêm alimentando a mídia.

O Vaicomdeus, SARL, do título, é o nome de uma agência funerária, na qual o personagem principal, Eugênio, ou Sô Tô (diminutivo de senhor doutor), vai encomendar o enterro de uma tia com a qual morava num dos bairros de Luanda. Na juventude, Eugênio havia participado das lutas pela independência do país. Finda a guerra, tornou-se professor de matemática e fez de sua casa um lugar de ensino para várias gerações de alunos. Na funerária encontra Cecilia, ou Sissy, executiva da empresa, bem mais jovem do que ele, que já o conhecia de nome. Haviam vivenciado, de forma diferente, acontecimentos importantes da história do país. Eles se enamoram e, no diálogo que dura quatro dias – fio condutor do romance –, transcorrem quatro décadas da vida angolana.

Vaicomdeus, SARL adota uma linguagem coloquial para narrar episódios vividos pelos personagens. A intimidade do autor com a matéria sobre a qual trabalha é característica forte de sua escrita. Tal como a descrição da região conhecida como chana, grande planície coberta por altos capinzais do leste de Angola. Essa região, entre o capinzal e a floresta, é onde Eugênio havia lutado, território no qual o cotidiano da guerra obrigava os homens a se descobrirem frágeis no confronto com a Natureza.

Sissy, que ainda era criança quando Eugênio já era combatente, não compartilha do idealismo que havia motivado a geração que a antecedeu. O encontro dos dois é embate de visões sobre mundos em desalinho. Logo no primeiro diálogo – travado em torno da prestação dos serviços funerários –, o leitor se apercebe disso ao observar a própria caracterização dos personagens. De um lado, o professor idealista, morador de casa simples, em bairro afastado. Do outro, a mulher livre, profissional, que toma iniciativas e torna objetiva a conversa, buscando conhecer o cliente para ser precisa no tipo de serviço a ser oferecido: vip, executivo ou classe econômica.

O livro Vaicomdeus, SARL está dividido em partes, como um concerto: Vivos (lento ma no tropo), Mortos (alegro con spirito), Renascidos (finale: ala breve). Concerto cujos movimentos surpreendem pela sutileza de narrativa transmitida por um contador de histórias africano, espécie de griô moderno. Mescla de escrita e sangue da experiência: gota encarnada sobre as linhas negras do livro.

O SEGUNDO JÚLIO, O GUERRILHEIRO.

Dele muito se falou no tempo dos grandes acontecimentos da guerra pela independência de Angola, meados dos anos 1970. Júlio de Almeida ainda não era o escritor. Era o Comandante Juju, à frente das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) na tomada de Luanda, batalha que foi crucial para a vitória do movimento dirigido por Agostinho Neto. Angola era, então, um jogo de xadrez, no qual as potências buscavam acomodar suas peças na disputa de interesses num dos territórios mais ricos da África. Comissário político das Forças Armadas durante a guerra, deputado e quadro do governo, o Comandante Juju tornou-se popular através do programa de rádio Ponto da situação, no qual informava o país sobre o dia a dia da guerra e da política. Um dia olhou à volta e optou por dedicar-se ao ensino. E durante quase 30anos foi professor na Faculdade de Engenharia.

O TERCEIRO JÚLIO, O EXILADO.

Conheci-o em Argel, onde trabalhava como engenheiro e integrava a delegação do MPLA (Movimento Popular de Angola) e o Centro de Estudos Angolanos. Tinha acabado de chegar da Alemanha, onde se licenciou em Engenharia Mecânica. Não éramos muitos os que faziam parte da comunidade de língua portuguesa na capital argelina daquele tempo, Meca dos que se opunham a ditaduras e regimes coloniais. Daí a frequência de reuniões entre brasileiros, angolanos, moçambicanos, que tinham quase sempre na casa de Miguel Arraes o seu epicentro. Por vezes nos juntávamos para peladas de futebol, em campo malcuidado, debaixo de frio e vento. Se lembro bem, Júlio era bom atacante. Nos encontros, havia a voz e o violão de Arnaldão, sempre bem-humorado, que partiu cedo para a terra sem mal. Mais reservado era Henrique Abranches, escritor e artista, que pintou na parede da sala da casa onde morava um mural no qual se via uma máscara africana a segurar um cesto de onde saíam centenas de pequenos guerrilheiros. Tempos depois, uma reprodução desse painel iria ilustrar a contracapa do conhecido romance de Luandino Vieira, No antigamente da vida, das Edições 70. E também Jorge Pires, depois ministro da Indústria, que avistei pela última vez em Maputo, num encontro rápido, após um dos conturbados acontecimentos de Angola, no qual foram assassinados os militantes e quadros angolanos Said Mingas e Helder Neto. Said Mingas, que pouco tempo antes havia passado por Moçambique para participar do III Congresso da Frelimo e pronunciou um discurso como a dizer adeus.

No ensaio O narrador, Walter Benjamin observou que era cada vez mais difícil encontrar pessoas capazes de contar histórias e que por isso a arte de narrar estava a exaurir-se. Mas há autores que ainda conseguem incorporar ao trabalho de ficção aquilo que o pensador alemão chamava o “lado épico da verdade”. É essa característica o que reúne esses três Júlios num só e o faz diferente de tristes trânsfugas, escritores ou políticos, que fingem ignorar o passado e sequer sabem aonde os conduzirá o futuro.