Stefan Zweig - Adeus Europa.
O filme é uma coprodução alemã/francesa/austríaca, dirigida por Maria Schrader. Sua estreia aconteceu em maio de 2016, na Alemanha. Desde então, é sucesso de bilheteria, tendo ali ultrapassado os 200.000 espectadores. Contempla passagens dos últimos seis anos da vida do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), que vão de 1936 – quando de sua participação num congresso do Pen Club, em Buenos Aires –, até a morte dele e da mulher, Lotte, em fevereiro de 1942.
A filmagem é construída em “fragmentos”, com um introito. Faz-nos pensar numa missa, que se encaminha para um sacrifício final. No caso, o suicídio dos dois, ocorrido em sua casa, em Petrópolis, episódio tratado com delicadeza. A “Petrópolis” do filme merece aspas. As cenas “brasileiras” foram filmadas em São Tomé e Príncipe, e não no prédio da Rua Gonçalves Dias, na cidade fluminense, hoje um pequeno museu, a Casa Stefan Zweig. A cineasta Maria Schrader comentou não ter utilizado como cenário o lugar onde o escritor residiu nos seus últimos dias, em razão da desfiguração da paisagem original. Mas o filme nada perde com isso. As tomadas que transcorreram em São Tomé mostram-se bem mais adequadas à reprodução cinematográfica da época e do lugar em que viveu o escritor.
Menos do que um estudo biográfico, o filme é a dissecação do comportamento psicológico de um intelectual judeu de classe média alta, que abandona Viena diante da eclosão do nazismo. Olhar sobre quem sente despencar as pontes entre duas épocas, dois mundos, e não consegue mais, como as gerações anteriores, o isolamento em tempos de catástrofe. É o que confessa Zweig em suas memórias.
O filme o observa através de um viés semelhante ao que ele empregou na criação de seus próprios personagens: geralmente anti-heróis confrontados com dilemas psicológicos. Através deles, é possível perceber algumas influências que marcaram o escritor. Entre elas, Freud, o “grande e severo espírito”, a quem Zweig votava verdadeira devoção. A troca de opiniões entre os dois resultou numa longa correspondência, que deixa transparecer o quanto biografias, novelas ou ensaios do escritor carregam a marca do psicanalista. Seu humanismo, por sua vez, traz a marca de Erasmo de Roterdão (1466-1536), o pensador que, tendo vivido num momento crucial das guerras de religião, recusou-se a comprometer sua neutralidade. Zweig, na biografia que fez do autor de Elogio da loucura, anotou que o filósofo havia sido o menos fanático dos homens.
Josef Hader, que faz no filme o papel de Zweig, assimila com agudeza o personagem, deixando transparecer o crescente espanto do escritor diante do flagelo que vai se fechando ao seu redor. As cenas em que ele é pressionado a assumir atitudes mais firmes – tanto no Congresso do Pen Club, como na do encontro com sua primeira mulher, durante a passagem pelos Estados Unidos – revelam as tensões frequentes a que foi submetido nos últimos anos e o levou a rupturas dolorosas. Entre elas, certamente, a que mais lhe trouxe amargura, a ocorrida entre ele e o escritor francês Romain Rolland. O autor do Jean-Christophe não perdoou ao amigo de três décadas o fato de ele não ter se engajado na luta para livrar uma Europa submetida à barbárie.
Afora sua qualidade cinematográfica, é possível que o sucesso do filme se deva também a outros ingredientes. Zweig continua a ser um dos escritores mais lidos. Além disso, relembrar sua história pode ser interpretado como um alerta a mostrar que fantasmas que rondaram o Mundo à sua época podem estar de volta.
Por toda a obra de Zweig perpassa sua convicção de que somente a cultura redime a Humanidade e a previne de fanatismos, como os que marcaram a II Guerra Mundial. Esse sentimento lhe foi tão forte, que, apesar de judeu e próximo admirador de Theodor Herz, nunca aderiu ao sionismo. Optou por não se conformar à qualquer causa. Até que, no final, deixou de acreditar no futuro, a ponto de confessar que falava de humanismo enquanto se mirava no espelho e concluía que sua vida não havia sido mais do “que uma mentira aumentada às dimensões de um destino”.
O título alemão do filme, Vor der Morgenröte (Antes do amanhecer) foi traduzido em português Stefan Zweig – Adeus Europa. Amanhecer x Adeus. Como se a própria ambiguidade das traduções do título sugerissem, curiosamente, o dilema que tanto atormentou o escritor e bem poderia ser resumido assim: É tudo fim ou apenas recomeço?
A comovente cena final – o casal de suicidas visto através do espelho de um armário entreaberto – motiva-nos a ‘ressuscitar’ alguns personagens. Um deles, o amigo Ernst Feder, o que lê a carta de despedida de Zweig. Feder, intelectual alemão, que teve interessante passagem pelo mundo cultural brasileiro da época. Ou Gabriela Mistral, prêmio Nobel de Literatura, então moradora de Petrópolis e amiga de Zweig, que vemos passar pela cena de forma quase despercebida, cuja poesia nos solicita uma redescoberta.
Diante da tela, somos confrontados com o drama de Stefan Zweig, escritor erudito, egresso de uma das cidades mais sofisticadas da Europa, da qual se viu obrigado a emigrar. E findou por fazer parte da história de um país visto como exótico e atrasado, onde decidiu morrer.
No prefácio à edição portuguesa de Brasil, país do futuro, Manoel Ricardo de Lima é atento ao princípio de visita que norteia o ensaio de Stefan Zweig, mas ressalta que o tempo-ingênuo que perpassa o livro faz com que ele mereça lugar entre os “textos para a interpretação da nacionalidade, num conjunto dos discursos de nação, abrir as possibilidades de leitura desse sistema absurdamente complexo que é o Brasil”.
Por todos esses ingredientes, o filme nos estimula a conhecer melhor obra e percurso desse grande escritor humanista, que acabou por sucumbir à descrença. Para tanto, temos à mão Morte no paraíso, a mais apurada biografia de Stefan Zweig, da autoria do escritor e jornalista Alberto Dines.