98137b1957b66cd82d67049633f9ad68 A

 

Ouvi Caetano Veloso e pensei no romance O desgosto da Bélgica, de 1983, do flamengo Hugo Claus (1929-2008). É que livro tem coisa de gente. Um artista pode ter um bom desempenho. Mas isso não basta, se não houver a força que o faz diferente e nos arrebata, feito ímã. É a “força estranha” cantada por Caetano. Poema, conto ou romance precisam desse estranhamento. Raro é o livro do qual nos apropriamos como coisa íntima ou que nos provoca a partilhar sua leitura com os outros. Nenhum crítico é capaz de explicar o fenômeno. Nem Goethe conseguiu.

O livro O desgosto da Bélgica foi publicado em 1983 (editado em português 14 anos depois, em 1997, pelas Edições ASA, de Portugal). Logo recebeu vários prêmios, foi traduzido em diversas línguas, fez de seu autor um dos indicados ao Nobel.

O tempo do romance é o dos anos que atravessam a II Guerra. O cenário é Walle, uma pequena cidade belga, fictícia, com suas torrezinhas, sua fileira de casas operárias, umas poucas vilas com jardim e, de vez em quando, uma estátua de anão. Como diz o livro: o destino da Europa está em outro lugar... A Bélgica, na ocasião, é caminho de passagem dos exércitos de Hitler, tem um rei que é proprietário de um país – o Congo Belga –, e a população é dividida entre os que falam francês e flamengo. A Igreja tudo benze e tem a palavra final até mesmo no recrutamento dos empregados do Banco.

O menino Louis Seynaeve é o principal personagem e narrador, que conta a epopeia de sua infância e de sua passagem à adolescência num sinistro internato católico com hábitos da Idade Média. Ele e quatro colegas brincam de fazer parte de um grupo iniciático e secreto, “Os apóstolos”, por se darem nomes dos seguidores de Cristo durante as reuniões. A “seita” reproduz, nas peripécias juvenis, as formas de alienação religiosas e políticas com as quais se defrontam na vida familiar ou no contato com os religiosos do ambiente de estudo. Os outros meninos, os não “apóstolos’, os que não fazem parte do círculo, são chamados por eles de “hotentotes”. Essa expressão, de conotação racista, foi a denominação dada pelos holandeses a um povo nômade da África, considerado “primitivo”.

Tudo o que acontece no romance é observado pela lente do menino, alter ego do escritor. Numa linguagem feroz, sarcástica e, ao mesmo tempo, plena de humor, o livro disseca a vida de uma pequena burguesia conservadora e hipócrita. Destripa as relações dos habitantes com os invasores alemães, os mecanismos do mercado negro, o antissemitismo. Em uma das passagens, o anticomunismo reinante é percebido através da conversa com uma freira, a irmã Cris, que presenteia o personagem com chocolates enquanto comenta a situação crítica provocada pelo fim da Guerra da Espanha. Os comunistas haviam sido derrotados pelo Cristo Rei e os que haviam conseguido fugir, segundo ela, acabariam por buscar refúgio no Norte e contaminar a população do país.

O desgosto da Bélgica chegou a ser comparado pela crítica ao romance O tambor, do alemão Günter Grass, cujo personagem é um anão que, mesmo antes nascer, é dotado de uma inteligência extraordinária. Ele testemunha a ascensão do nazismo e se recusa a crescer para não participar do mundo dos adultos. No romance de Hugo Claus, o menino Louis Seynaeve também apela para memórias ‘fictícias’ e se comporta como anti-herói. Mas, ao contrário do anão de O tambor, o personagem de O desgosto da Bélgica participa do mundo dos adultos e o questiona em tom de farsa, com uma rara exuberância de linguagem.

O livro de Hugo Claus tem elementos do realismo mágico típico dos Países Baixos, o mesmo que está tão presente num livro como As aventuras de Till Eulenspiegel ou na pintura de um Brueghel ou de um Hieronymus Bosch.

A própria biografia de Hugo Claus segue essa tradição: fugiu de casa aos 15 anos, trabalhou como pintor de parede e operário de usina. Aos 20, já era considerado o menino prodígio das letras flamengas.

Numa entrevista, ele explicou o título do livro que o tornou célebre: era sua avô quem dizia que ele era o “desgosto da Bélgica”. Rebelde e iconoclasta, cedo conheceu Antonin Artaud, a quem chamaria de “um pálido capitão” dos marginalizados, num poema escrito após a morte do escritor e poeta francês. Sedutor e dado a aventuras, Hugo Claus foi autor de romances, poemas, pinturas, filmes e peças de teatro. Entre os seus amores, Silvia Kristel, a Emanuelle do cinema, a quem acompanhou nas filmagens pela Tailândia.

Nas duas traduções a seguir, uma amostra da poesia do autor de O desgosto da Bélgica. No poema intitulado Terre sans pain: Las Hurdes ele rende homenagem a um documentário de Luis Buñuel, filmado em 1932, mergulho da câmera no mundo de uma bizarra e miserável aldeia da Espanha.

Las Hurdes

Não conhecemos nem carne nem pão
Dormimos sobre folhas que se transformam em adubo
para nosso país de pedra

Nossas casas não têm janelas
e nossa aldeia tem catorze anões e trinta idiotas

Chove e nossas barragens não são colmatadas
Não chove
Rezamos e nossa terra permanece árida
como nossa pele
como nossa garganta que incha e se racha

Quem é nosso pai é nosso amante
e nossas mães morrem cedo

A vergonha é nossa quinhão
A infâmia nosso alimento
A erva daninha está plantada em nossos rostos

Olhamos na vossa câmera
Nós somos tangíveis
e semelhantes a vós que dizeis:
Isso são Las Hurdes

 

Te anoto

Minha mulher, meu altar pagão,
a quem toco e acaricio com dedos de luz,
meu jovem bosque em que passo o inverno,
meu sinal impudico e terno,
escrevo teu hálito e teu corpo
sobre o partitura.

E ao teu ouvido prometo novíssimos horóscopos
e te preparo a outras voltas ao mundo,
e uma escala em alguma Áustria.

Mas perto dos deuses e das constelações
a felicidade eterna também se exaure,
e não tenho cama, nem casa,
nem mesmo flores para tua festa.

Te anoto sobre a partitura,
enquanto cresces e floresces como um jardim.


Quando sua memória começou a falhar, atingida pelo mal de Alzheimer, Hugo Claus tomou o trem da Eutanásia e partiu do país de seu desgosto no dia 19 de março de 2008.