Rublev
Um dia, Deus, pálido, chegou de uma cinzenta estepe,
olhos semicerrados contra o vento e parou
e disse: Colore-me, asperge teu sangue nos meus lábios.
Eu disse: Aqui está o sangue de todo nosso povo,
estas são tuas feridas, azul e roxo,
ouro, marrom e a pálida lavagem cinza da morte.
Estas (deus) são as dores cromáticas da carne,
eu disse, confio que te farei corar,
Ah! Vou te marcar com cicatrizes de nascença
para sempre, hei de enraizar-te na madeira,
sob o sol assarei teu pão
de pobre e nunca te deixarei partir
para o branco deserto, para a areia da privação.
Sentaremos e conversaremos em torno
de uma mesa e compartiremos uma refeição, uma terra.
O poema fala de um Deus quase como de um mujique saído de uma longínqua estepe russa. Seu autor, o galês Rowan Williams (1950), é arcebispo anglicano. Além de teólogo, filósofo e poeta, foi o primeiro arcebispo não inglês da Catedral de Cantuária e, durante 10 anos, de 2002 a 2012, dirigiu os destinos da Igreja Anglicana.
O título do poema é o mesmo de um filme antológico: André Rublev, do cineasta russo Andrei Tarkovsky.
Tanto o poema, quanto a película, dizem respeito ao grande pintor de ícones do século XIV. Andrei Rublev, monge e santo, teria pintado sua obra-prima, A trindade, após ter jejuado e orado durante 40 dias e 40 noites. Reza a crônica que seus olhos foram vazados, como castigo por ter aposto sua assinatura no quadro, o que era proibido aos membros da Igreja Ortodoxa. Tanto o poema Rublev, como nos poemas intitulados Our Lady of Vladimir, Feofan Grek: the Novgorod Frescoes ou Pantocrator: Daphni, entre outros, é manifesta a simpatia de Rowan Williams, católico anglicano, pela teologia da Igreja Ortodoxa.
No filme de Tarkovsky sobre Andrei Rublev, as cenas, por sua beleza, desfilam na nossa memória como grandes afrescos: o homem que despenca de um balão lançado da torre de uma igreja, um cavalo a revirar-se na estepe em câmera lenta ou o monge escondido atrás de uma árvore sendo seduzido por uma mulher nua que corre no bosque durante uma cerimônia pagã. Numa das passagens do filme, há um longo diálogo teológico entre o pintor e seu grande mestre, Téofanes, que também motivou um poema de Rowan Williams: Téofanes o grego, os afrescos de Novgorod.
Ler o poema e assistir ao filme é como se o texto contivesse o mesmo núcleo das “dores cromáticas da carne” de onde brotaram as cenas do cineasta russo. Essa proximidade entre poeta e cineasta deve-se, além do aspecto místico do tema, à atração de Rowan Williams por motivos visuais, característica de sua poética. Muitos de seus poemas são construídos em torno de obras de pintores conhecidos. No Déjeneur sur l’herbe, de Édouard Manet, retrato de um piquenique no campo em que dois homens vestidos à caráter são mostrados em companhia de uma modelo desnuda olhando fixamente o espectador, Rowan Williams pergunta, no poema, “se haverá algum vinho derramado/sobre a grama enfadonha do verão/ou apenas a areia das horas que fluem”. Na pequena trilogia intitulada Los niños – uma série de poemas que aludem a pinturas de Diego Velásquez –, o primeiro dos poemas, Niño de Vallecas, leva o mesmo título do quadro do Museu do Prado, no qual se vê um anão da corte de Felipe IV da Espanha sentado numa pedra, a perna estendida e um dos pés em primeiro plano. A cabeça do anão encontra-se ligeiramente erguida e seu olhar fixa-se no espectador com um misto de candura e tristeza. O poema dá voz ao personagem, um bufão – brinquedo humano da corte de Espanha –, e nos induz a um sentimento de compaixão, outro traço distintivo da poética de Rowan Williams:
Niño de Vallecas
Olha. Grandes pés, gordinhas pernas
estiradas.
Novamente. Os lábios abrindo-se um pouco,
conscientemente. Sou infeliz: informaram-me
não ser um acidente.
Novamente. Os olhos perscrutam o vazio.
Sou infeliz. O que você fará?
Você é meu amigo? O que você daria
a uma criança fantasiada
de homem vestido de criança?
As interrogações que Williams derrama na voz do retratado traduzem o sentimento de misericórdia do poeta pelos ofendidos e injustiçados. Na sua atuação pública, tem sido contundente a forma como ele se manifesta, através de livros ou de debates, em torno de temas conflituosos da contemporaneidade, a exemplo da questão homossexual ou da Guerra do Iraque.
No dia em que a fumaça e os gritos tomaram conta de Manhattan, no 11 de Setembro, ele estava na igreja anglicana da Trindade, em plena Wall Street. Sua voz ergueu-se em testemunho e resultou no livro Writing in the dust (Escrevendo no pó), no qual comenta os acontecimentos e se manifesta contra a ideia de vingança. Segundo ele, as nuvens de poeira e detritos cobrindo Manhattan fizeram o mundo parecer-lhe estranhamente silencioso e parecido aos flagrantes de beleza e mistério evocados num dos poemas de Robert Frost, Paralisado pela floresta numa noite de neve.
Em alguns dos poemas de Graves and gates (Sepulturas e portas), o arcebispo poeta medita sobre o período marcado pela perda dos pais e de amigos próximos. Observa como a morte “metaforiza” o que é central na vida das pessoas, a exemplo do câncer de garganta de Rilke ou a recusa a se alimentar que levou à morte a filósofa Simone Weil.
Quando frequentava o Christ College, uma das instituições da Universidade de Cambridge, Rowan Williams abrigava, no seu apartamento de estudante, mendigos que não tinham onde dormir. Apego à caridade e revolta contra a injustiça marcam sua poética pensante, cuja abrangência se estende da observação dos penhascos de seu País de Gales às pinturas de Gwen John, à morte do velho Tolstói na estação de Astapovo ou à música de Bach:
Bach para cello
Pela matemática chegaremos ao paraíso.
Esta página, porta da academia de Deus
para o geômetra,
onde as pálidas linhas envolvem um continente,
transcrevem o campo de formal luz,
o acender-se com fricção.
Paixão queimará fundo nestes afiados canais:
sob o fio da lua desejo corre rápido,
a dor da carne em sua corda.
Sem consumação.
Sem perda.