Na manhã da sexta-feira, 30 de setembro de 2016, a cidade de São Paulo amanheceu diferente. Quem sobrevoasse o Parque Ibirapuera, área “nobre” da cidade, avistaria uma mancha colorida de mais de 40 metros de comprimento e pensaria que uma bomba de cores havia sido detonada.
A imprensa enviou repórteres para averiguar o acontecido e proceder às entrevistas de praxe. Cedinho, um dos primeiros moradores do bairro a sair de casa, dirigindo automóvel blindado, do ano, foi parado gentilmente para dar opinião.
- O que acho? Porra! Uma puta falta de respeito. Coisa de comunista!
O repórter agradeceu e desejou-lhe os bons-dias. Apressado, o automóvel arrancou num gemido de 150 cavalos.
O catador de lixo, que faz ponto numa das ruas que margeiam o parque, não mereceu entrevista. Mas ao perceber o grande borrão, achou engraçado. Não sabia o significado do monumento, nem o motivo do que supunha ser brincadeira de um carnaval extemporâneo. Apenas pensava no trabalho que teriam seus conhecidos, os garis da prefeitura, para apagar as pinceladas de tinta.
- O mais difícil vai ser subir nas costas deles para limpar aquilo tudo! Riu baixinho.
Por volta das 6h, as pessoas foram chegando para a caminhada no parque.
A dama do cachorrinho, colante amarelo e boné de grife, passou sem se aperceber do acontecido. Falava ao celular com trejeitos de quem trata com um príncipe das Astúrias. Nem se importou com o ipê a cuspir flores amarelas ou o sabiá que dava ar de sua graça num galho do jacarandá.
- Nem me fale, minha filha. Há três anos vivo sozinha. Dou graças a Deus! Claro, os tempos mudaram. Nada a ver com o tempo do FHC, o real equiparado ao dólar! Puxa! No tempo dele fui várias vezes a Paris! Nem pensar!
Outra vez fez de conta que não via o catador de lixo, embora se cruzassem quase todos os dias. Uns meses antes até lhe pedira para ajudar o jardineiro do condomínio a carregar latas de metralha do apartamento. Estava reformando um quarto para alojar a amiga americana da filha, convidada para fazer palestras sobre marketing.
- Bom-dia, seu José!
Seu José respondeu alegre ao bom-dia do homem de bermudas. Era o professor, um dos raros caminhantes a se aperceber da existência do catador de lixo. Vinha ao parque sempre acompanhado de um amigo e o dia trouxera para eles um bom motivo de conversa.
- Claro, velho. Tudo isso vale enquanto metáfora! Até vou criar um neologismo: desestatuar. Em vários lugares do mundo estão derrubando estátuas. Entre nós, acontece o oposto. Qualquer desembargador tem busto, torturador tem nome de rua. Basta fazer parte do establishment. Aqui é o lugar onde até estátua consegue voto!
O sabiá solfejou um dó menor. Deu um rasante na pequena nuvem de chuva saída do tubo de irrigação. Pousou na grama, bebericou, balançou as asinhas.
O professor sentiu-se comovido diante da cena e assobiou a música do Tom.
- Puxa vida! Sabiá! No meio da cidade!
O passarinho hesitou no voo, expressando estranheza no seu campo visual. O encarnado contaminava sua paisagem aérea de um costumeiro verde que te quero verde.
É que, naquele dia, o Monumento às Bandeiras, obra do famoso escultor Victor Brecheret, 33 anos do desenho à montagem final, acordou de várias cores, numa preponderância vermelha. Mácula mais visível desde a sua inauguração durante o quarto centenário da cidade de São Paulo, em 1954. Homenagem aos ‘bravos’ que colonizaram o interior do país a ferro e fogo, torturando, matando. Homenageados que deram nome a outra operação de sinistra memória, a Operação Bandeirantes. Com os retoques do tempo, duas passagens da história que se completam, cada uma a seu jeito: choque elétrico substituindo chibata, pau de arara em vez de mergulho em rio de piranha, fuzilamento em vez de degola ou enforcamento.
Pensando nessas coisas, o professor comentou:
- A verdade histórica às vezes chega como o voo do sabiá.
O colega não entendeu o que tinha a ver passarinho com bandeirante.
- Muitas vezes o acaso é o nosso mestre. Pouca gente sabe o que foram as bandeiras ou o que representa este monumento solene no centro da capital econômica do país. Até recebeu o apelido de Empurra-empurra, pois os figurantes empurram um barco que não sai do lugar. As cordas da escultura também parecem frouxas, como se servissem apenas de enfeite. Será que o artista fez assim de propósito, sugerindo que bandeirante nada empurrava, que fazer força era coisa de preto ou de índio?
O professor lembrou que um bandeirante famoso, Fernão Dias, mandara matar o próprio filho. Numa versão romanceada, o escritor Paulo Setúbal contou o episódio no livro O caçador de esmeraldas. Sugeriu também ao colega de cooper a leitura do historiador cearense, sobre o qual ninguém mais fala, um certo Capistrano de Abreu. Quem se orgulha de passado colonial, famílias “tradicionais” ou baronatos trocados a custa de baraço e cutelo, disse, devia conhecer o que foi registrado por Capistrano. Por exemplo, a matança do 3 de dezembro de 1637, quando 140 paulistas aliciaram 150 tupis e assaltaram um povoado. Tocaram fogo na igreja e a população nela refugiada foi obrigada a sair, a modo de rebanho de ovelhas correndo para o pasto: “com espada, machete e alfanges lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Provavam o aço de seus alfanges em rachar meninos em duas partes, abrir-lhes a cabeça e despedaçar-lhes os membros”.
Capistrano pergunta:
- “Compensará tais horrores e consideração de que por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”
Naquela seca manhã de sexta-feira, com 22,2 mm de chuva, 29% da média normal, o sabiá voltou a se molhar na mangueirinha de irrigação. O catador continuou a mergulhar as mãos nos depósitos de lixo. O professor calou-se. E voltou da caminhada pensando sobre que monumento vai ser erguido no próximo centenário da cidade de São Paulo.