Susana.e.os.velhos Noroes jun.18

 

Uma anedota revela o quanto o tema bíblico de Susana no banho, ou Susana e os anciãos, é explorado pelos artistas de todas as épocas, inclusive Picasso. Suzanne Valandon (1967-1938), pintora pós-impressionista e modelo de vários nomes conhecidos, entre eles Renoir e Toulousse-Lautrec, chamava-se Marie-Clémentine. Até o dia em que Toulousse-Lautrec lhe disse, em tom de brincadeira: “Você, que vive posando para os velhos, deveria ser chamada de Susana”.

A história de Susana faz parte do chamado “ciclo de Daniel” e encontra-se apenas na Bíblia católica. Conta que uma certa Susana, mulher casada e tida como virtuosa, vive numa comunidade da Babilônia. Dois velhos juízes apaixonam-se por ela. Certo dia, cada um deles sai de casa pela madrugada, com a intenção de seduzi-la durante o passeio matinal. Encontram-se por coincidência no caminho e, após um bom bate-papo, compartilham suas intenções libidinosas. Combinam o assédio à bela judia e, ao encontrarem Susana, tentam violentá-la. Ela consegue desvencilhar-se e os juízes, frustrados, decidem vingar-se e acusam-na de adultério, então motivo de pena de morte. Então, inventam que ela havia sido flagrada por eles debaixo de uma árvore em companhia de um amante. A comunidade é reunida para julgar o caso e o desfecho promete ser fatal. Entra em ação um jovem, acompanhado de um anjo. É Daniel, o profeta. Usando de sabedoria, ele pede à multidão que afaste os dois homens para interrogá-los separadamente, antes do veredito final ser pronunciado. Ao serem questionados sob qual árvore havia ocorrido o flagrante do suposto adultério, eles oferecem respostas que não coincidem. O jovem desmonta a trama e os dois juízes acabam por ter a mesma sorte que haviam premeditado para a bela Susana: são condenados e lançados de um precipício pela população.

No terceiro tomo da recente tradução que faz da Bíblia, cuja ênfase é dada ao aspecto literário (Lisboa: Quetzal Editores, 2017), Frederico Lourenço tece comentários sobre as duas versões gregas (a dos Septuaginta e a de Teodócion) que nos chegaram dessa história de Susana. A opinião do tradutor é que a versão de Teodócion (segunda metade do século II) é mais complacente em relação ao comportamento dos juízes, provavelmente porque a “Igreja a tenha preferido por dar uma ideia ligeiramente menos imoral dos presbúteroi (‘anciãos’)”. Mas essa versão inclui no episódio uma variante: Susana tomava banho quando é molestada pelos juízes. Curiosamente, este pormenor erótico, ao longo do tempo, é o que mais motiva os artistas nas obras que retratam o acontecimento. Susana é quase sempre exibida desnuda, em atitude lasciva, como quem compactua com os seus perseguidores.

Paolo Veronese (1528-1588), por exemplo, a representa como se ela estivesse conversando amigavelmente com os dois homens. Tintoretto (1518-1594) ainda acrescenta à cena um espelho, dando um quê de vaidade à cena do banho. Na tela de François de Troys (1645-1730), Susana olha-se nas águas de um tanque, numa pose sensual, enquanto os homens debruçam-se sobre ela, numa demonstração de conivência entre os três.

Numa sociedade feudal e católica, mulher não tem vez. Mesmo a Bíblia tendo assegurado que Susana era mulher “finíssima”, ela acaba transformada pelos pintores em objeto de desejo. Uma exceção entre os artistas é Rembrandt (1606-1669), cujo quadro, Susana e os dois velhos, expressa a verdade do texto numa pintura marcada pela postura realista dos personagens, num fundo sombrio, em tons que variam entre o ocre e o vermelho muito escuro. Em contraste com outros artistas, o que chama a atenção na tela do pintor flamengo não é a figura de Susana, mas a perfeição da própria obra. A modelo é retratada sem subterfúgios, criatura carnal que olha fixamente o espectador, como se o interpelasse. É a visão de um pintor de gênio dos Países Baixos, sociedade protestante e rica, na qual já emerge uma burguesia de armadores e comerciantes. Rembrandt não tem mais o olhar que predomina entre os artistas de um mundo feudal, geralmente atrelado a um mecenas, para quem a mulher é ser inferior e submisso.

Entre os retratos de Susana e os anciãos, chama a atenção o de uma jovem artista italiana, Artemisia Gentileschi (1593-1654), filha de um grande pintor, Oracio Gentilescchi, o mais próximo colaborador e discípulo de Caravaggio. Artemisia iniciou-se cedo na pintura. Estuprada por um artista amigo de seu pai, o caso culmina num processo, durante o qual ela é arguida sob tortura. A representação de Susana e os anciãos por Artemisia é uma espécie de registro da situação feminina de seu tempo. O quadro foi pintado quando a artista tinha apenas 17 anos. Nele, a repulsa violenta da mulher ameaçada traduz-se nas mãos que se agitam para barrar o avanço dos juízes ou no ricto facial de quem revela aversão e revolta. Ao contrário de outros pintores, a nudez da modelo, assustada e desfeita, nada tem de sensual. A obra, além do valor artístico da pintura, é alegoria e libelo.

Na recente versão de Frederico Lourenço, traduzido sem o filtro da crença, o texto bíblico sobre o episódio induz a uma leitura subversiva, na qual tudo pode ser invertido. Assediada sexualmente por notáveis, Susana é a mulher que não se submete. Num tempo em que a velhice é entendida como sabedoria, ela é libertada por um jovem, o profeta Daniel. Contrariando a tradição, no imbróglio “jurídico”, ele consegue demolir com argúcia dois velhos juízes experimentados. O texto bíblico até enfatiza que os moços são capazes e são amados por sua simplicidade.

O episódio também revela que a imoralidade e a falta de escrúpulos de magistrados já eram uma preocupação nas comunidades babilônicas séculos antes de Cristo. Não tivesse surgido a figura carismática de um profeta, assessorado por um anjo, Susana teria sido lançada de um despenhadeiro por mais uma calúnia amparada pela “Justiça”, a Bíblia católica teria perdido uma parábola instigante e a pintura um de seus motivos mais recorrentes.