Bandeira reprodução da internet

 

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No post de hoje, como um flashback do anterior, entramos na intimidade das cartas entre Mário de Andrade e seu amigo e principal correspondente, Manuel Bandeira – por ele considerado o “São João Batista” do modernismo –, para acompanharmos os bastidores do desgaste da figura de Graça Aranha, autoproclamado chefe, em meio a conflitos com outros modernistas que levaram a sua deposição, consumada na carta pública do líder paulista. O autor de Canaã lançou mão de sua influência institucional em determinados grupos para defender sua “narrativa” de protagonista do movimento. Mas não colou. Dois dos principais atores do modernismo, Mário e Bandeira, colocam em cena suas críticas a respeito e trazem para a rede outros “influenciadores”, estes, sim, fundamentais para os rumos desse movimento cultural, como Oswald de Andrade e Ronald de Carvalho.


CARTAS ENTRE MANUEL BANDEIRA E MÁRIO DE ANDRADE


MÁRIO DE ANDRADE

Compreendes: por mais que ele [Graça Aranha] se ponha na nossa frente, por mais que os coiós, daí, do Norte e do Sul até Antonio Ferro agora em Portugal digam que ele iniciou o modernismo brasileiro, as datas estão aí. E as obras. Agora o que ninguém negará é a importância dele pra viabilidade do movimento, e o valor pessoal dele. [...] Hoje nós somos. Se o Graça não existisse, seríamos só pra nós, e já somos pra quase toda gente. [...] Ele saiu da Academia… Pois eu lhe mandei uma carta de solidariedade que esforcei-me por deixar sem nenhum laivo de ironia. A ironia vinha do sacrifício que ele fazia da Academia pra ganhar a grande Glória de ser condutor de gentes.


MANUEL BANDEIRA

[...] Põe de lado essa desconfiança entre Rio e São Paulo. A coisa desagradável existiria mesmo que ambos formassem um São Paulo maior. O que há é a repugnante ambiência literária... Como me sinto sempre desajeitado no meio dela!

[...] O Graça não é amigo de ninguém. É um organizador de grupos, e dentro dos grupos cabalista de facções. Foi sempre assim. Para tal corteja interesseiramente os piores medíocres. Mente como um diplomata, mas hélas! comete gafes que nenhum diplomata cometeria. O caso que me contas do Oswald é típico. Ajunto eu: o Graça encontrou-me na Avenida e contou-me que a cisão estava feita, que o Oswald tinha sido posto de lado, que ela andava metendo esnobismo no meio, senhoras e pessoas ricas, a D. Olívia, até pouco tempo era o Paulo Prado, agora descobriu um Assunção...

Que leviandade e que pouca vergonha! Quando estive aí a amizade de D. Olívia era entusiasticamente festejada. Era sinal que o movimento moderno empolgara a sociedade culta. Agora é esnobismo... e do Oswald.


MÁRIO DE ANDRADE

Me parece irremediável: quando se falar do nosso movimento pro futuro o Graça aparecerá como chefe dele e diretor das nossas consciências, o que é a coisa mais inexata e injusta que pode haver. Mas me parece irremediável isso. Dá raiva. Não porque eu pretendesse dirigir o movimento, creio que já bem provei a minha repugnância de ser diretor de consciência, não tenho coragem de assumir tanta responsabilidade porém dá raiva ver um homem aparecer de repente de longe e com a reputação que já tinha apossar-se duma coisa que ainda não sabia o que era mas que inteligente como era viu que viável, só porque tinha a esperança de que o livro dele, esse Estética da vida que é apenas uma síntese mal feita de filosofias orientais, saísse a renovação do Brasil. E como chegou no momento psicológico em que o Brasil estava com o nosso sacrifício se renovando, afeiçoou-se a essa renovação para ser o manda-chuva dela.


MANUEL BANDEIRA

Ora, o Graça que se fomente. Ele veio conhecer o movimento moderno conosco. O “extrema-direita” com que ele apareceu na Estética era o Marcel Proust. Todos nós podemos ajustar contas com o Oswald, meter-lhe o pau, desancá-lo, enforcá-lo, mandá-lo para o inferno, requisitá-lo novamente para o estraçalhar com mais requinte, reduzi-lo a pó de mico ou pasta de lubrificar mola de para-choque... nunca, porém, pôr de lado, porque o movimento moderno, a onda moderna partiu de São Paulo e ele foi batalhador da primeira hora.


MÁRIO DE ANDRADE

Quando o Osvaldo disse que o Graça desconhecia inteiramente o modernismo quando chegou no Brasil, disse a mais verdadeira das verdades. Leu e observou tudo o que estávamos fazendo, bem me lembro das palavras vagas que pronunciava ouvindo e vendo as nossas pinturas e poesias! e se apossou de tudo. Isso dói porque o sofrimento nosso embora continue a valer pelo que traz pelo Brasil foi se tornar pedestal dum homem que em nada nos influenciou. Em nada. Por outra influência pra pior porque bem sei quando este diletantismo extravagante em que caíram os paulistas que estavam indo tão bem! depende da atitude de Graça Aranha contra a qual quiseram reagir. Osvaldo pregando incultura só pra reagir e ficar independente, o jeito de espectador do Ribeiro Couto, todo o diletantismo dos paulistas, Taci, Sérgio, Rubens quase que vem só disso: não quererem parecer influenciados. De forma que em vez de deixarem o espírito seguir na evolução natural forçaram-no a devanear passeante, renegam o Brasil, riem quando o tempo não é de rir propriamente mas de agir consciente.

Eu mesmo você não imagina o esforço que faço quando as minhas ideias coincidem com as do Graça como por exemplo a respeito de abrasileiramento do Brasil pra não ser insincero pra comigo mesmo só pra mostrar que difiro dele. Felizmente sou mais feliz que os meus amigos e arrocho a vaidade e continuo sincero. Afinal das contas que importa Graça e que ele fique o criador de todos nós? O que importa é a vida, e olhar com franqueza a vida e saber aceitá-la e trabalhá-la com energia e realidade. Isso penso estar fazendo e esses pensamento que só digo pra você não são queixas nem sofrimento, são observações dum desabusado que me parece tem bastante nobreza dentro da alma. Só a reação que o Graça provocou nos meus amigos e que os fez assim desenganados da arte, piruteando numa dança de ombros eterna e insincera, isso eu não posso perdoar. Detesto o Graça.


MANUEL BANDEIRA

[...] Graça, Ronald e Renato formam uma frente unida e batem-se pelo equilíbrio entre o sentimento nacional e a cultura universal. Sadio e louvabilíssimo. Mas inculcam-se um tanto impertinentemente. Eles não têm o direito de se arrogar ou deixar que se lhes arrogue o papel de reformadores, de chefes.

[...] Dou-me bem com todos os três mas assim um pouco distantemente, afastando as ocasiões de um arranco-rabos. Fui arredio para com todos os três. Todos eles afinal me captaram com repetidas manifestações de apreço. Do Renato e do Ronald não tenho queixa. Do Graça não gosto positivamente. Mas no caso da Academia as coisas se armaram de sorte que não era possível hesitar entre a burrice e a inteligência, entre a luz e a titica. E o gesto do Graça foi belo. O erro do Oswald foi romper em mau momento. Graça que me apresentou ao Jean Bard e ao Blaise Cendrars impertinentemente como “precursor, 1º autor de versos livres no Brasil, muito antes de Mário de Andrade e dos outros”. Esquece-se do meu nome na conferência, fica espantadíssimo com o meu aplauso.

[...] O escrever para jornais e conferências prejudica o artista, mas Ronald tem qualidades excepcionais para vulgarizador e educador e como ele em arte e em crítica é sobretudo um surpreendente talento de assimilação, não lastimaria muito que o artista ficasse um pouco sacrificado com isto – para bem da Pátria e felicidade geral da nação. [...]

 

REFERÊNCIAS

Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade. 13 de outubro de [1924]. In: MORAES, Marcos Antonio (org.). Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/IEB, 2001, pp. 137-140.

Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. 22 de novembro de 1924 e 7 de maio de 1925. In: MORAES, Marcos Antonio (org.). Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/IEB, 2001, pp. 153-156, 205-208.