
Abaixo, selecionamos três poemas de Ricardo Aleixo, poeta cuja obra é o mote da nossa edição de novembro/2017. São citados no ensaio especial que Gustavo Silveira Ribeiro escreveu sobre o artista.
***
Com isso
(cedido pelo poeta, integrará seu próximo livro)
dizem desconfiar da voz que diz
o poema como se com isso
valorizassem 
a palavras
& o todo poderoso
sentido
que a habita
ria mas desconfiam
mesmo é da palavra
da hipótese de não haver
dentro dela
nada além da voz que
todo o temporalidades
só fala de começos
que é
toda começos
Na noite calunga do Bairro Cabula
(extraído do site da revista O Menelick)
Morri quantas vezes 
na noite mais longa?
Na noite imóvel, a 
mais longa e espessa,
morri quantas vezes
na noite calunga?
A noite não passa
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem nome e de novo
morrendo a cada
outro rombo aberto
na musculatura
do que um dia eu fui.
Morri quantas vezes 
na noite mais rubra?
Na noite calunga, 
tão espessa e longa,
morri quantas vezes 
na noite terrível?
A noite mais morte
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem voz e outra vez
morria a cada
outra bala alojada
no fundo mais fundo
do que eu ainda sou
(a cada silêncio
de pedra e de cal
que despeja o branco
de sua indiferença
por cima da sombra
do que eu já não sou
nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes
na noite calunga?
Na noite trevosa,
noite que não finda, 
a noite oceano, pleno
vão de sangue, 
morri quantas vezes
na noite terrível,
na noite calunga
do bairro Cabula? 
Morri tantas vezes
mas nunca me matam
de uma vez por todas.
Meu sangue é semente
que o vento enraíza
no ventre da terra
e eu nasço de novo
e de novo e meu nome
é aquele que não morre
sem fazer da noite
não mais a silente
parceira da morte
mas a mãe que pare
filhos cor da noite
e zela por eles,
tal qual uma pantera
que mostra, na chispa
do olhar e no gume 
das presas, o quanto
será capaz de fazer 
se a mão da maldade
ao menos pensar
em perturbar o sono
da sua ninhada.
Morri tantas vezes
mas sempre renasço
ainda mais forte
corajoso e belo
- só o que sei é ser.
Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora
e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos
que um dia eu faço
a vida viver.
O Poemanto 
ensaio para escrever (com) o corpo
(da antologia A extração dos dias, publicada pela revista Escamandro)
1 
Sou, quando coloco sobre 
meu corpo (negro) 
o pedaço de pano (preto) 
coberto por palavras grafadas 
com tinta (branca) 
ao qual dei o nome 
de poemanto, 
um performador.
2 
Movendo-me ali, 
na exiguidade espacial 
das efêmeras formas escultóricas 
produzidas pelas corpografias 
que improviso, 
tenho vivido situações que, 
por ultrapassarem 
a dimensão da performance 
(como gênero artístico), 
projetam-me numa zona 
de percepções expandidas, 
em nada semelhantes a 
experiências vivenciadas 
no cotidiano.
3 
Como performador, 
esforço-me para seguir 
a única instrução 
de que consigo me recordar 
enquanto tento grafar com o corpo 
no espaço: deixar para trás 
os cadáveres, se não for possível 
enterrá-los com dignidade, 
ou incinera-los 
e espalhar suas cinzas ao vento.
4 
Porque errar pela cena-mundo 
com um cadáver às costas 
é correr o risco de ceder 
de vez à loucura 
(Arthur Bispo do Rosário 
bordou em um de seus estandartes: 
“Todo louco tem um morto 
que ele carrega nas costas. 
O louco só fica bom quando 
se livra do morto”), tantas são as vias 
que se abrem tão logo começa 
cada novo começo.
5 
Abandonar o cadáver 
de algum outro morto, 
mas não a sombra 
da minha própria morte, 
que está ali onde estou, 
está aqui e sempre comigo, no 
tempo “saturado 
de agoras” (Octavio Paz) 
que é o da vida 
em forma de arte.
6 
As palavras escritas no poemanto 
foram extraídas do meu poema 
“Para uma eventual conversa sobre poesia 
com o fiscal de rendas”, 
publicado em 2001 
no meu terceiro livro, Trívio.
7 
Há, aí, uma pequena perversão: 
apesar de o poema 
figurar o inventário, por meio de 
associações sonoras, de minhas 
únicas verdadeiras posses (“meus próprios olhos/ 
meus próprios ovos”, 
“meus próprios glóbulos/ 
meus próprios lóbulos” 
etc.), todo o trabalho 
foi confeccionado 
por mãos alheias 
- as das cantoras/atrizes
que integravam, em junho 2000,
a primeira formação 
da Sociedade Lira Eletrônica Black Maria, 
que fundei e dirigi até 4 anos depois, 
com o músico e ator Gil Amâncio.
8 
Desde sua primeira utilização, 
o poemanto – que só passou 
a ter esse nome de 2005 para cá – nunca foi lavado. 
Cultivo o mito pessoal de que nele 
se conservam as energias 
do piso de cada lugar de força 
(nem sempre performo em palcos) 
em que “o usei”.
9 
Largar o poemanto pelo chão, 
depois de rodopiar pela cena, equivale, 
torno a dizer, a deixar para trás 
o que possa haver 
de morto grudado à segunda pele 
em que ele se tornou para mim 
naqueles instantes sem fim e sem começo, 
naquele espaço sem bordas visíveis 
constituído só por centros que, 
mais e mais, 
se (e me) descentram.
10 
Não por acaso, Reynaldo Jimenez, 
poeta peruano radicado na Argentina, 
disse do poemanto, 
que ele viu num pequeno vídeo 
disponibilizado por mim na internet, 
que aquela estranha fusão de sujeito-objeto 
“por momentos es un devenir animal, medusa, 
mantarraya...”
11 
Com os parangolés de Hélio Oiticica, 
aos quais tem sido frequentemente comparado, 
o poemanto se relaciona apenas quanto ao fato 
de que, sem um corpo que os vista 
e evolua com eles, não constituem, 
em si, obras de arte.
12 
As evoluções que faço pela cena 
quando coberto 
pelo poemanto não aspiram 
à condição de dança. 
Embora não deixem de lançar 
uma interrogação acerca 
do que é, afinal, a dança. E sobre 
quem pode dançar 
(pergunta insistentemente repetida, 
nas últimas décadas, por muitos daqueles 
que têm a dança como ofício).
13 
Não é, contudo, por cautela 
ou modéstia, ou ambos 
os sentimentos juntos, 
que prefiro dar à presentificação 
do meu corpo em cena 
a denominação de corpografia. 
É, antes, para frisar que, ainda aí, 
é uma forma de escrita o que almejo.
14 
O que quer que meu corpo escreva, 
ou que se escreva/inscreva nele, será sempre 
para leitura de um outro 
tal possível escritura. 
O poeta Chacal disse em algum lugar, 
com respeitosa graça, 
que o poemanto é um 
“embrulho de gente letrada”.
15 
Com o corpo, sei que grafo lá onde 
nenhum “onde” é mais (ou ainda) possível, 
senão como imagem que se desfará 
tão logo venha a ser percebida. 
Tudo é texto, mesmo 
que não de todo legível. 
Tudo (em nós), afinal, é texto: 
vide a sequência genômica.
16 
Mas nem tudo é palavra. 
Nem a palavra pode tudo. 
Porque também somos imagem 
(em ininterrupta, mas descontínua 
movência): rastro de coisas i/móveis 
que nenhum nome, 
palavra nenhuma designa. 
Porque já não há tempo. 
Ou porque o tempo não existe.
17 
Só por aí se pode tentar 
“ler adequadamente” 
o poemanto: em seu deslizar 
(no limiar da legibilidade) 
entre outras imagens/corpos 
que se interrelacionam na cena.
18 
No poemanto, sob as temporalidades 
em colisão que o atravessam, 
a ideia de “obra” (ainda que “aberta”,
para citar o conceito trabalhado 
inicialmente por Haroldo de Campos, 
em meados da década de 1960, 
quase em paralelo 
com o desenvolvimento 
das teses de Umberto Eco 
acerca do mesmo tema) é golpeada 
por uma tão violenta 
valorização do processo 
que me vejo obrigado 
a definir o que faço como 
“obras permanentemente em obras”.
19 
E nem serei eu, 
pseudo-oficiante 
de um precário rito que sequer 
se traduz em alguma 
promessa de felicidade, 
quem conseguirá, 
só por força do modo 
como opera, produzir os termos 
de inteligibilidade 
do poemanto: é aquele que outrora 
se dava o nome de espectador 
que cabe a talvez impossível proeza 
de fazer do manto um poema.
20 
Em Providence, EUA, 
maio de 2006, 
pessoas em busca 
de seus lugares na plateia 
passavam rentes à minha cabeça,
quase pisando-a, 
quando eu era ainda só 
um pedaço de pano preto, 
quase invisível, largado no chão;
 em Maceió, novembro 
do ano seguinte,
lancei-me a certa altura 
da performance 
contra o fundo preto do palco,
no voo zonzo do giro 
sobre meu próprio eixo,
sem ter a mínima ideia quanto
ao que me esperava
do outro lado 
da frágil parede: 
como não pretender que os riscos 
que efetivamente corro 
ao habitar o poemanto 
não sejam partilhados, 
ao menos no plano simbólico, 
por quem me vê e ouve?
21 
O poemanto, 
o que sei 
que ele é: 
formas em (de)formação. 
Em (lenta) dispersão. 
Vide, novamente, 
o mapa genômico. 
Vide a vida.
22 
O poemanto, observam 
alguns dos “que sabem”,
 lembra o rito dos Eguns. 
Concordo em parte. 
E aponto: num e noutro caso, 
a morte desempenha 
funções diferentes.
23 
Elogio do excesso, 
do desperdício, 
da indistinção entre o sentido 
e o não-sentido. 
Passagem para zonas 
ainda não mapeadas
 da (minha) consciência.
24 
Elogio da lentidão, 
para citar o belo título 
de um ensaio fundamental 
do geógrafo-pensador 
Milton Santos, o poemanto 
é um modo de contestação 
das velocidades 
(nem todo evento 
múltiplo e simultâneo 
é necessariamente rápido) 
que constituem o espaçotempo 
da modernidade (e desse seu
 rebento prematuro a que 
se tem dado o nome de 
pós-modernidade).
26 
Está mais que visto: 
o poemanto tem partes com Exu. 
o embaralhador 
de cartas sígnicas, 
o que detém o controle sobre 
“a infinita permutação 
do que poderia ser” 
(a frase, usada em outro
contexto, é de Paul D. Miller, 
a.k.a. DJ Spooky, 
That Sublime Kid, 
um dos pensadores-artistas 
mais originais do Black Atlantic).
27 
O poemanto não é 
um mapa genômico: 
um mapa genômico 
pode ser um poemanto.