Perfil Mariana 1 Nora Lezano

 

 

Em agosto de 2017, quando entrevistei Mariana Enriquez pela primeira vez para o Pernambuco, seu livro As coisas que perdemos no fogo acabava de ser publicado no Brasil, Michel Temer e Mauricio Macri eram nossos temores do momento, ainda não tínhamos covid nem Bolsonaro e Mariana estava imersa na escrita de algo longo, estranho e sombrio, que ela própria ainda não sabia aonde iria chegar. Seiscentas e sessenta e sete páginas depois, aí está Nuestra parte de noche, romance com o qual venceria o Prêmio Herralde em 2019 e se tornaria um divisor de águas — turvas, é verdade — em sua obra.

Queridinha de Patti Smith, publicada em mais de vinte países e venerada por seus leitores como uma espécie de rockstar, Enriquez estreou na ficção aos 21 anos com o romance Bajar es lo peor, seguido de Cómo desaparecer completamente. Depois, enveredou para o conto com Los peligros de fumar em la cama — que acaba de ser anunciado finalista do Internacional Booker Prize 2021 —, além de As coisas que perdemos no fogo, o primeiro a aportar no Brasil, e da novela Este é o mar, também publicada por aqui. Para este ano, além do romance-tijolão que chega em julho pela Intrínseca, com tradução de Elisa Menezes, a editora Relicário anunciou que publicará sua obra de não ficção A irmã caçula: Um retrato de Silvina Ocampo.

Em Nuestra parte de noche, Mariana adentra o terreno do fantástico lovecraftiano ao narrar as implicações de uma macabra sociedade secreta e o destino de seus médiuns. Submetido aos Bradford-Reyes, uma poderosa família argentina de origem inglesa instalada em Misiones, na fronteira com o Brasil, Juan Peterson luta para libertar seu filho Gaspar da funesta herança da mediunidade. Enquanto conduz os rituais da Ordem, convocando as sombras para garantir vida eterna a seus membros, Juan lida com os desafios da paternidade e os fantasmas de sua esposa morta em estranhas circunstâncias. Se os contos mais recentes da autora eram quase todos protagonizados por mulheres, aqui são os homens que regem a narrativa.

— Eu vinha pensando muito na dupla de Juan e Gaspar. Não considero que deva escrever sobre personagens de um gênero ou espécie em particular, mas sobre os que me obcecam por algum motivo. Eu queria falar sobre hereditariedade e para mim funcionava melhor a relação pai e filho, pois queria falar sobre masculinidade, sobre como ela é transmitida (o mal e o bom e o indefinível), e também sobre História, uma família e um país. Se é possível livrar-se dela, se é uma sentença, uma condenação. Se ter filhos significa ou não transmitir a eles nossas derrotas e desgraças. Na Argentina, especificamente, minha geração é a dos pais desaparecidos, dos órfãos de pais e mães assassinados pelo Estado e depois de filhos que, em alguns casos, precisam ir em busca da sua identidade porque foram sequestrados, entregues pelos militares a famílias diferentes da biológica. Alguns as repudiam, outros não; para outros, ainda, o que sentem está em algum lugar entre os dois polos. Num sentido mais prosaico, os segredos familiares moldam as identidades e em muitos casos as transformam.

“Todos os filhos têm cicatrizes”, diz, em carta, um dos personagens mais atormentados do livro.

Ocultismo, bruxaria, sacrifícios humanos e experiências sobrenaturais são um dos eixos do horror construído por Mariana Enriquez, que se alimenta tanto de superstições populares ouvidas na infância por sua avó materna, de Corrientes, quanto das leituras e pesquisas que faz obsessivamente sobre esoterismo, magia, ocultismo britânico e rituais de religiões africanas. “São uma história alternativa da espiritualidade, com universos e personagens fascinantes, mas eu mesma não pratico nada”, afirma. O tema já aparecia em contos de seus livros anteriores, mas em Nuestra parte de noche ele ganha contornos políticos ao trazer como pano de fundo o terror real vivido em toda a América Latina: os crimes de Estado e a naturalização dos sequestros, as prisões e torturas; os corpos enterrados em valas comuns; a complacência das elites com os militares durante a ditadura — e vice-versa. É um romance com uma trama complexa, mas cujo núcleo está, ou parece estar, nas disputas pelo poder, numa certa crítica aos “donos do país”.

— Sempre pensei o livro centrado na Ordem, que a princípio não tinha este nome. Não associo a seita diretamente com a oligarquia argentina: o deus que a Ordem venera os precede e, de fato, é um deus dos poderosos, mas não exclusivo das classes dominantes da América Latina, e sim dos donos do poder no mundo e em diferentes momentos, que vão mudando historicamente, embora cada vez menos, sobretudo neste continente. Minha ideia original não era uma crítica tão específica às elites, porque não vejo o romance como alegórico: é um romance de gênero, e no terror o Mal costuma estar associado aos poderosos, é quase uma convenção à qual adiro, talvez por isso este gênero me interesse particularmente.

Embora nos últimos anos Enriquez tenha se tornado um ícone da literatura de terror na Argentina, seu projeto literário extrapola os limites do gênero, e olha que este não é nem de longe um gênero reducionista. Difícil falar em influências no caso de uma consumidora tão compulsiva por livros, filmes, discos e quase tudo relacionado à cultura pop. Alguns rastros são mais evidentes, como a literatura gótica do século XIX e toda uma tradição de suspense e ficção científica estadunidense, de Ursula K. Le Guin a Stephen King. Fã das irmãs Brontë, considera O morro dos ventos uivantes sua bíblia pessoal, mas também venera o chamado “gótico sulista” representado por Faulkner, Flannery O’Connor, Donald Ray Pollock e Toni Morrison — hoje, uma de suas autoras de cabeceira.

— No gótico me interessam duas coisas: a claustrofobia, especialmente nas escritoras mulheres, e a ideia de terra maldita, irrecuperável pelos danos causados, a herança que ela não pode deixar de transmitir, de modo inexorável. E o gótico sulista me interessa porque está muito mais próximo da estética e da experiência latino-americana do que o gótico tradicional europeu clássico. Há calor, famílias, desgraças exorbitantes, segredos, a propriedade é maldição e é desejo. Na América Latina, autores que me interessam nessa linha são [o chileno] José Donoso e [a mexicana] Amparo Dávila.

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Neste novo romance, Mariana dialoga constantemente com a tradição, retomando e reformulando obras de sua biblioteca pessoal. O próprio título é emprestado de um poema de Emily Dickinson, Our share of night to bear (“Nossa porção de noite”, na tradução de Augusto de Campos). Outro verso que emerge do livro, e com implicações na própria trama, é For the dead travel fast (“Porque os mortos viajam depressa”), de Gottfried August Bürger, citado no Drácula de Bram Stoker. Há muitos mais interlocutores, incluindo a própria literatura argentina: para abrir o livro, Mariana escolhe uma epígrafe sobre imortalidade retirada de A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares; para fechar, vale-se da famosa enumeração borgeana ao nomear tudo o que o personagem de Gaspar vê, como em O Aleph. Segundo a autora, isso — retrabalhar os clássicos — seria menos uma lição aprendida de Borges do que de outros que o citaram com total liberdade, como Neil Gaiman em Sandman, um de seus quadrinhos preferidos.

Nesse mash-up de referências, um dos trunfos de Mariana Enriquez está em transferir os arquétipos do horror anglo-saxão ao contexto sociopolítico argentino, injetando ainda elementos locais, como o culto a San La Muerte, um santo pagão em forma de esqueleto, e o Invunche, um ser deforme da mitologia Mapuche. As casas abandonadas da zona sul de Buenos Aires, com suas portas e janelas vedadas por tapumes, são mais uma peça do tenebroso quebra-cabeça que compõe a obra de Mariana. Peça que, como tantas, parece transmigrar de um livro a outro, encharcando-se de malignidade para verter todo seu veneno concentrado em Nuestra parte de noche.

— Meus dois primeiros livros são romances. Depois, em 2009, publiquei minha primeira coleção de contos e durante um tempo me dediquei à ficção breve. Os livros de contos tiveram bom reconhecimento internacional, então meio que pensam em mim como uma contista, mas a verdade é que me sinto mais próxima da experiência do romance, talvez num sentido extraliterário. Para mim um conto é como um relâmpago, uma ideia que eu executo, uma voz que conta algo, mas em geral estão ligados a um universo maior. Minha imaginação é muito estridente, penso sempre em tramas, personagens, mundos, às vezes durante anos, e nem todos terminam em literatura, muitos são apenas uma estranha companhia. Eu tinha vontade de voltar ao romance: havia incursionado na nouvelle com Este é o mar e ansiava por essa experiência mais longa e obsessiva, pelo convívio com os personagens, as idas e voltas, a construção da estrutura. Sentia falta desse processo criativo e também queria, de algum modo, reunir minhas obsessões de uma vez por todas, pois sentia que elas estavam esparramadas em diversos textos.

Nuestra parte de noche não é um livro fácil. Além de muitos personagens e arco temporal expandido, há um notável efeito coral, construído a partir de diferentes narradores. No primeiro capítulo, Las garras del dios vivo, acompanhamos Juan e Gaspar em uma misteriosa viagem de carro, de Buenos Aires a Misiones, em janeiro de 1981, em plena ditadura. No segundo, La mano izquierda, estamos dentro de uma noite do verão de 1983, quando Dr. Bradford participa de um ritual de magia comandado por Juan e rememora as vezes em que ele, o médico, operou Juan, o médium, na época uma criança de cinco anos. O terceiro capítulo, La cosa mala de las casas solas, junto com o último, Las flores negras que crecen en el cielo, constituem uma espécie de romance de formação do menino Gaspar, dos nove aos vinte anos. Já Círculos de tiza pode ser lido como uma autobiografia de Rosário, a mãe morta de Gaspar, e abarca desde sua formação espiritual e intelectual até os primórdios da seita, culminando com os loucos anos 1960 vividos em Londres com um grupinho de amigos — entre eles um músico em início de carreira, de aspecto andrógino e um quê de réptil, chamado David.

— A voz de Rosário foi a mais difícil de criar, pois eu queria mantê-la em silêncio. Queria que ela, a mãe, fosse um segredo, e acabou sendo a única que fala em primeira pessoa. Ela me venceu: os personagens às vezes fazem isso, principalmente nos romances, por isso eu tinha tanta vontade desta experiência, que é vertiginosa mas depois também é surpreendente, pois o romance implica certa falta de controle. Eu não queria um romance cronológico nem com um narrador onisciente, acho que já não funcionam no romance moderno, então busquei as formas pelas quais os diferentes narradores contariam etapas da história. Mas o processo foi muito orgânico, porque eu tinha relativamente claras cada uma das partes, quem seria o narrador principal e para onde a história iria.

O jornalismo acaba tendo um papel decisivo na resolução da trama e na criação do seu efeito polifônico. No capítulo El pozo de Zañartu, Enriquez constrói com absoluta verossimilhança uma falsa reportagem assinada pela personagem de Olga Gallardo no ano de 1993 sobre a descoberta de fossas comuns com dezenas de corpos de desaparecidos da ditadura, num povoado a 15 km das Cataratas do Iguaçu. É difícil resistir à tentação de buscar no Google a Lagoa Totora, o povoado de Zañartu e outros elementos ali descritos, mas a autora garante que nada daquilo é real, e sim um experimento de escrever ficção usando as ferramentas do jornalismo literário. Mariana também jura que “Olga Gallardo” não foi uma homenagem intencional a “Sara Gallardo” (jornalista e ficcionista argentina que nos últimos anos voltou à cena, reivindicada postumamente), mas o modo como a personagem Marita se refere a Olga parece descrever justamente o caso de Sara: “embora todos insistissem em como tinha sido boa, ela nunca era lida em sala de aula”, diz a estudante de jornalismo, namorada de Gaspar.

Pergunto a Mariana se o tom mórbido da imprensa argentina dos anos 1980 e 1990 é algo buscado também em sua literatura — em uma das cenas do livro, um grupo de crianças assiste vidrada à espetacularização da morte de Oimara, uma colombiana de 13 anos agonizando ao vivo e a cores em rede nacional. Mariana acha que não, mas admite: “ter assistido pela TV um grau altíssimo de terror e impudor foi uma experiência audiovisual que marcou minha sensibilidade, e essa sensibilidade (essa educação sentimental, eu diria até) certamente inclui a escrita”.

Escrever com fone de ouvido é, talvez, um dos motivos pelos quais a autora consegue manter o ritmo alucinante do romance ao longo de suas 667 páginas. Além de montar playlists, ela também costuma se inspirar na mitologia do rock. No caso de Nuestra parte de noche, especialmente o rock do final dos anos 1960, começo dos 1970, o declínio do movimento hippie e o início de experiências musicais “cheias de hedonismo (o glam) ou de violência e magia (Led Zeppelin, os Stones daquela época).”

Hedonismo, erotismo, lascívia, tesão. Nada disso falta em Nuestra parte de noche. Como em outras obras de Enriquez, começando por sua estreia, Bajar es lo peor, a sexualidade é sempre ambígua e há uma aura de androginia nos personagens. Juan Peterson é a própria expressão dessa ambivalência: um homem quase etéreo de tão enfermo, mas inacreditavelmente belo e forte, que pode tanto ocupar os lençóis de Tali, meia-irmã de sua esposa morta, como do misterioso Esteban/Stephen. Não à toa há no romance referências explícitas a um marco da literatura queer, A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. Le Guin.

— A heteronormatividade não tem a ver com a vida cotidiana, que é diversa. Para mim, sinceramente, esta é a verdadeira normalidade. Acho isso sensual e eu gosto da sensualidade e de me divertir com o que escrevo, de me apaixonar por meus personagens. A literatura queer é uma das minhas principais influências, ainda que não seja tão óbvia. Dennis Cooper, Edmund White, Christopher Isherwood, Kathy Acker e Manuel Puig são alguns destes autores. E Clive Barker, que me influenciou tanto como escritor queer quanto de terror. Tem também um livro de Samuel Delany, The mad man, que foi superimportante para mim.

Como parte da população do mundo, Mariana está como as personagens da literatura gótica que tanto a fascinam: enclausurada. De quarentena. Ela conta que está passando a pandemia “pessimamente e com muita paranoia”. Não escreveu quase nada durante este último ano, a não ser textos breves para a imprensa, mas nada de ficção — acha que não conseguiria concluir, pois sente que estes tempos pandêmicos, como realidade e como narrativa da realidade, não deixam espaço para outra coisa: são invasivos demais. Um destes poucos textos, publicado na Revista de la Universidad de Mexico no especial Diario de la Pandemia, com data de 13 de abril de 2020, diz:

— Quase o tempo todo não sei o que dizer e constantemente me pedem que eu diga alguma coisa. Uma coluna sobre como estou lidando com o confinamento. Uma opinião sobre a natureza mutante do vírus. Acho bonitas as cidades vazias e parcialmente retomadas pelos animais? Tudo é contraditório e angustiante. Um escritor, um artista deve poder interpretar a realidade, ou ao menos tentar. Como alguém que trabalha com a linguagem, eu deveria colaborar com o debate público. Pensando, escrevendo, interpretando. Porém, a cada dia que passa, pensar durante essa pandemia se torna uma neblina espessa: não vejo, estou perdida, só consigo distinguir minhas mãos se as estico. [...] Sinto como se acabasse de sofrer um acidente de carro. Vejo sair fumaça do motor, sinto cheiro de queimado, não sei se haverá uma explosão ou não, o corpo não me dói porque a batida é muito recente e, do outro lado da janela, vinte pessoas me perguntam: “Vai comprar um carro novo? Será que dá para consertar este? Poderá viver normalmente se tiver que amputar uma perna? As pessoas do outro carro sobreviveram? Se ficaram com sequelas, você as ajudará financeiramente? Se morreram, pagará o enterro? Seu filho, que estava no banco do passageiro, usava cinto de segurança?” Todos os dias é assim.

As enfermidades, a loucura, os corpos em ruína abundam na obra de Mariana Enriquez. Não faltam cirurgias, cicatrizes, hipotermias, ataques epilépticos, membros fantasmas, enxaquecas aterrorizantes. Em Los peligros de fumar en la cama há um conto sobre uma garota apaixonada por um cardíaco. Em Nuestra parte de noche há personagens que dizem coisas como “o prazer da serra contra o osso esterno”. Na primeira juventude, Mariana leu muita “literatura da aids” (Hervé Guibert, Cyril Collard, Larry Kramer, David Wojnarowicz e também a argentina Marta Dillon, ativista do movimento Ni una menos e autora de Vivir con vírus: Relatos de la vida cotidiana) e foi marcada por uma certa escrita sobre o corpo como máquina que falha, a doença como invasão.

— Me interessam os corpos diferentes, que passam pela vida de modo diferente. Me surpreende que suas experiências sensíveis raras vezes apareçam na ficção — embora apareçam com frequência na autoficção, em diários e crônicas —, pois há muita gente com doenças e condições que percebem as coisas e estão no mundo de modo distinto. A saúde também é um estado e, em geral, temporário. O apagamento da doença é muito particular, porque é um exagero da negação do corpo e sua sensibilidade: a maioria de nós temos condições ou doenças que são determinantes na vida. Me interessa a vulnerabilidade do corpo em geral e os efeitos de “anormalidade” provocados pelas doenças, pelas drogas, pela violência e as sequelas da violência. Um corpo enfermo está muito presente, exige atenção e cuidado e tratamento.

No fim das contas, Nuestra parte de noche é um romance sobre o problema da morte e o desejo vampírico da eternidade. Eis a força motriz da Ordem e de seus membros. “A escuridão havia ditado como perpetuar a consciência: devíamos trasladá-la de um corpo a outro. Transmigrar, diriam em outras tradições […] Era um método repulsivo, porque significava apropriar-se de outra vida, de outra identidade”, explica Rosário, no seu capítulo em primeira pessoa. Escrever não seria outro modo de se apropriar de outras vidas, de continuar indefinidamente, como querem os personagens deste livro?

— Não. A morte é o fim. Não me interessa o que acontecerá com meus livros depois de morta. Também não penso em “continuar”, pois não sou eu que continuo, mas esses textos que um dia escrevi e já não me pertencem. Precisamente o desejo dos membros da Ordem, de transladar a consciência a um corpo e manter a vida, me parece bastante razoável! Não entendo o consolo, para chamá-lo de alguma forma, de continuar na obra sem que a consciência dessa continuidade esteja presente.

O júri do 37º Prêmio Herralde definiu Nuestra parte de noche como “um romance total”, pertencente à estirpe das obras ambiciosas, que incluem O jogo da Amarelinha, de Cortázar, e 2666, de Bolaño. É como se Enriquez fechasse um ciclo de 25 anos em sua produção literária ao enfileirar fetiches e fantasmas pessoais, como num museu da barbárie humana. A intensidade insondável do mundo adolescente, casas malditas que devoram gente, os vícios e ruínas do corpo, as atrocidades da ditadura e o horror econômico da hiperinflação argentina. Tudo está lá. E também David Bowie, Suede, poetas mortos antes dos trinta e altas doses de putaria. Mas ninguém duvida que a mestra do gótico argentino contemporâneo continuará perseguindo estas sombras, como a serpente que se contorce num eterno círculo maligno. “Imagino que algumas coisas voltarão reformuladas ou insistirei nelas, e novas obsessões irão surgir. Felizmente tenho muitas”.