Entre paredes ensanguentadas de um prédio abandonado, povoado apenas por jovens (ou seriam zumbis?) que respiram apenas o ar rarefeito da dura tarefa de existir enquanto adolescentes, o herói, frustrado, está imerso na tentativa de desafiar as necessidades da sua condição de líder de si mesmo. Ouve passos pesados (de um animal, talvez?) através dos encanamentos do esgoto, onde ofega tentando não fazer barulho. Tenta sumir, enquanto a solidão e o terror se fundem, tornando pálidos os traços de humanidade que poderiam existir numa cena como essa.

 

É difícil falar sobre o universo literário de Santiago Nazarian sem cair na tentação de atravessar suas alegorias e personagens – jacarés assassinos, adolescentes angustiados, ordinários paranoicos –, todos tão simbólicos quanto o seu próprio dono. O herói da pouco elaborada cena acima não pertence a Santiago, mas todo o seu entorno é bastante familiar à obra do escritor paulista, dono de seis livros publicados e que lida, para o bem e para o mal, com o fato de ser uma espécie de alegoria de si mesmo.

 

A figura jovem, atualmente com 34 anos, e bonita de Santiago Nazarian carrega consigo histórias de vida inusitadas, o que leva o escritor a atender também por títulos como ex-barman de pub punk em Londres, ex-compositor de jingles, ex-redator de horóscopo e ex-roteirista de conteúdo erótico para disque-sexo. Logo quando começou a publicar, no início dos anos 2000, tudo isso convergia para a existência de um “personagem Santiago Nazarian”, um fetiche que se transformou num canal de atenção a mais para sua literatura.

 

“Eu acho que isso era mais no começo mesmo quando essa ‘nova geração de escritores’ ainda impressionava. Os jornalistas que me entrevistavam eram mais velhos do que eu, essa coisa de jovem tatuado fugia muito ao perfil de escritor brasileiro. Agora já é muito mais comum, já está mais assimilado. E nunca me incomodou usar isso, é algo real, faz parte de mim e da minha história e se serve para chamar atenção para os meus livros, beleza. Sei que grande parte do meu público jovem ou adolescente veio atraído por isso, pela minha figura, minhas histórias de vida”, avalia o autor. O projeto literário de Santiago está hoje sozinho e, de alguma forma, deslocado no cenário da produção contemporânea brasileira. O sanguinolento universo brutal que criou para tecer o que ele mesmo chama de “existencialismo bizarro”, construído sobre uma estética alucinada, muito próxima do cinema de terror e do videogame de ação, representa seu diferencial, mas também a limitação do seu crescimento no mercado nacional.

 

“Na verdade eu faço o que eu gosto, o que eu acredito, o que tenho prazer em escrever. Claro que o feedback ou a falta dele, às vezes causa frustrações, mas também não posso me queixar muito; meu trabalho tem seu espaço e seu público. Eu merecia um espaço maior, ser visto com mais seriedade? Talvez. Mas é um preço que eu pago também por estar escrevendo sobre jacarés assassinos”, pondera. “É bom sentir que estou fazendo algo que ninguém está fazendo. Não quero ser mais um. Não quero nem ser um escritorzão, desses com perfil de Cia das Letras, um escritor eficiente, premiado. Se for para conquistar alguma coisa, quero que seja do meu jeito. É como a letra de My Way... mas cantada pelo Sid Vicious”.

 

Nesse caminho menos Sinatra e mais Vicious, o escritor acabou por se encontrar numa espécie de solidão literária. Depois de um ano recluso em Florianópolis, local que define como o seu favorito no mundo, vivendo como um típico garoto de praia (“Pude viver uma outra vida lá, o que é muito importante pra mim, mas era uma vida muito solitária, e de vez em quando eu preciso do outro...”), Santiago Nazarian retornou a São Paulo, cidade onde nasceu e onde se concentra a principal efervescência da cena mais recente da literatura nacional. A cidade que melhor funciona no processo de divulgação e agitação literária, através de grupinhos que se formam por lá, é também a que ressalta o isolamento, proposital e ocasional, de Santiago.

 

“Minha escolha pela literatura é principalmente por ser uma arte individual, independente. Gosto de trabalhar sozinho; então para mim não faz o menor sentido querer me encaixar num grupo. Eu acho que muitas dessas panelinhas acontecem naturalmente, pessoas que se conhecem, se gostam, têm afinidades e se ajudam. Eu não pertenço a esses círculos porque não encontro tantas afinidades com escritores”, defende. Além do pernambucano Marcelino Freire, Santiago não tem grandes amigos no meio. “E é um pouco chato deixar de receber convites por isso – eu gostaria de pensar que minha produção em si já seria um bom cartão de visita”.

 

Mesmo para além da literatura, Santiago nunca foi de muitos amigos. “Na infância eu era muito medroso, tímido, não tinha amigos. Já na adolescência, até 16, 17 anos, eu era muito molecão, treinava caratê fanaticamente, todos meus amigos eram da academia, fazia certo sucesso com as meninas... Depois dos dezessete que eu mergulhei mais na vida, caí na coisa gótica, comecei com os piercings, as tatuagens. Descobri a homossexualidade também por aí, aos dezoito”, lembra. E talvez por essa virada tão drástica, de um sentimento de transformação tão grande entre a infância e a adolescência, essa última acabou se tornando um tema constante do seu trabalho.

 

Parte dos personagens de Santiago é de adolescentes que se deparam com o caos que pode marcar as transformações na passagem para a vida adulta. O tédio, a melancolia, a apatia provocada por essas mudanças acabam criando uma realidade caótica, como no caso do seu último romance, O prédio, o tédio e o menino cego. “Acho que a figura do adolescente vem um pouco por aí, por essa formação da masculinidade, a masculinidade ainda indefinida – não é uma figura exatamente real, ou realista – é um conflito interessante. E eu pessoalmente tenho um gosto muito particular, não me atraio pela masculinidade, me fascina muito mais o lado delicado e feminino num homem. Meus personagens ideais são sempre andróginos”, analisa.

 

Por mais (ou menos) que a androginia possa estar relacionada diretamente à homossexualidade, e o fato de ambas surgirem apenas de maneira pontual ao longo da sua obra, a figura de Santiago está ligada ao universo gay, como uma espécie de ícone. “Talvez se eu ficasse mais restrito a esse seguimento isso me incomodasse; do jeito que é, tenho um público gay forte, mas não se restringe a isso, sinto até que meu público feminino é maior. Também a homossexualidade nunca é o tema principal da minha obra, porque mesmo as relações amorosas não são o tema central, eu não trato do amor, então a homoafetividade não entra aí”.

 

De fato, não há espaço para amor na obra de Santiago. E se existe, ele está transfigurado em neurose ou obsessão, elementos que habitam o intervalo entre sexo e morte. Estes dois elementos, aliás, dosam as histórias do recente Pornofantasma. Trata-se do seu primeiro livro de contos, no qual as temáticas trabalhadas nos livros anteriores surgem na forma de diferentes exercícios narrativos. Estão lá as relações obsessivas, a juventude desencantada, os thrillers de terror, a violência sanguinária. Entre o tom de fábula, fantástico ou meramente visceral, os contos do recente Pornofantasma vieram para dar consistência ao universo temático já consolidado de Santiago, mas que agora pode respirar – e respira muito bem – através da prosa de fôlego curto. “A busca era fazer um livro de histórias que eu pudesse sentar e contar para você, que fizessem sentido e tivessem graça em si, mesmo fora do papel”, resume.

 

Santiago não tem um leitor ideal e ainda se surpreende com a recepção de sua obra. “Meus leitores são muito variados. Eu tenho sim esse povo jovem, de 20 e poucos anos, que é o povo que acaba aparecendo mais para mim, porque me procura na Internet, ou eu encontro na noite. Mas, por exemplo, dia desses participei de um debate, com a (escritora) Ana Paula Maia, em Belo Horizonte, e um senhor de 57 anos se levantou na plateia, disse que adorava ler e que adorava meus livros, era meu leitor. Isso é muito bacana, e o ideal para mim é mesmo ter essa mistura” destaca, orgulhoso.

 

“Claro que o grande público ainda não me aceitou, nem vai me aceitar. O grande público não aceita literatura em geral, muito menos literatura brasileira contemporânea, mas nunca pretendi ser unanimidade”, avisa. Na sua página do Facebook, porém, Santiago é uma plena unanimidade, refletida nas inúmeras cantadas que recebe através da rede social. “E quem não gosta de receber cantadas? Pena que o público leitor em geral não seja lá dos mais atraentes fisicamente... Mas sempre tem um ou outro; sei valorizar os leitores lindos”.