O grande Paulo Scott abre o forno do fogão de quatro bocas e enfia uma travessa com três nacões de alcatra moída. Prepara três burgers: para sua amada, a atriz Morgana Kretzmann, para o repórter e para ele. "Tu gosta do teu bem passado, não é?", recorda. A carne foi suavemente amassada por suas mãozonas e temperada com queijo parmesão ralado, sal e cebola roxa picada. Faz muito calor no Rio, um calor abafado no Humaitá, onde Scott vive, e mais calor ainda por conta do aperto na cozinha em chamas. Abrimos mais duas cervejas e xingamos o verão. Quinze minutos depois almoçamos à mesa de sua sala de estar, uma mesa de madeira escura que parece de boteco antigo, mesa de madeira escura que cai bem na casa de um advogado. Entre burger e ceva, falamos do livro que Scott acabou de entregar à Companhia das Letras, Ithaca Road. Como escritor, Scott é um hamburgueiro chapa-quente.
Conheço Scott há uns 10 anos, desde que soube de um advogado skatista mulato que escrevia contos e poemas angustiados em um vernáculo estranho e ritmo fraturado que devia tanto aos labirintos linguísticos legislativos quanto aos tombos no half pipe. Tinha um livro a sair pela editora mais bacana de Porto Alegre — a Livros do Mal, propriedade de Daniel Pellizzari e Daniel Galera — , Ainda Orangotangos. O original mix advogado/ skatista/ mulato/ escritor era sob medida para a seção de literatura da revista Trip, e ali acomodei o perfil massudo porém jamais maçante de Scott, 110 quilos compactos em 1,82 metro. Meses depois o conhecia em pessoa, sob uma tempestade de gim na Mercearia São Pedro, em São Paulo: sua figura — que combinava bermudas de skater com sapatos sociais pretos e camisa clara de mangas curtas abotoada até o colarinho ao sorriso infantil sob óculos de aro leve e cabelos finos de nenê cheirando a shampoo Johnson's — tinha o ar de um padreco perverso. Um monstro tímido, como sugere o título de um livro de poesia seu.
Dali em diante Scott, hoje com 47 anos, só cresceu. E não me refiro à sua pessoa (emagreceu doze quilos) como aos livros de prosa e poesia e à sua incansável atividade como agitador cultural. Quando notou que o corpanzil não zanzava com idêntica destreza entre a banca de advogados, as aulas de direito (seu Direito Constitucional Econômico — Estado e Normalização da Economiaé bibliografia básica) e as rodas literárias, resolveu cavar espaço em uma nova cidade: Rio de Janeiro. Sua terceira cidade, já que tinha morado em Londres entre 1989 e 90. Escolheu como QG o escondido bairro do Humaitá. Os projetos são concebidos em um escritório dominado por uma bela mesa (de madeira escura sólida) ladeada por quadros de amigos como Guilherme Pilla, Fabio Zimbres, Carla Barth, Pedro Alice, Jaca, Laerte, Rafael Sica e Eduardo Medeiros, e uma janela de onde o espia o Redentor (mas seu desktop tem vista para uma parede toda vazia, para não distrair a escrita). Ali surgem não só livros mas também peripécias literárias. Projetos como o Na Tábua, de literatura-mural, em que cada escritor dividia uma folha de papel A3 com um desenho de Zimbres (mais de 100 peças já foram expostas; aguardam uma editora para virar livro). Ou o caos ordenado da Orquestra Literária, happening que combinava, ao vivo e em vídeo, fragmentos das obras de vários autores com textos seus e composições de Flu, ex-DeFalla. Ou o De Modo Geral, uma "revista ao vivo" em que Scott "edita" colaboradores do naipe de João Paulo Cuenca, Xico Sá e Allan Sieber. Ou a novíssima Gabiru, revista literária digital em plena gestação, a ser lançada ainda em 2013.
Mulheres-abismo e amores expressos
No mesmo 2008 em que se mudou para o Rio recebeu o convite do produtor Rodrigo Teixeira para participar do Amores Expressos, projeto que mandava um autor brasileiro a alguma parte do mundo com a contrapartida de escrever um romance. Scott foi para Sidney, Austrália, passar trinta dias em solidão quase total, calado, em movimento constante e aleatório, de ônibus, trem, a pé — ou skate, claro. Quando surgiu a ideia do romance já tinha a história? "Ainda não", diz Scott, botando o burger no prato. "A história veio de algumas inquietações já existentes, como a vontade de imaginar uma protagonista autista, cuja postura pudesse reverberar obliquamente sobre as atitudes e destinos de outros envolvidos na trama, mas o argumento central veio todo das percepções adquiridas durante os trinta dias em que fiquei em Sydney e outros dez em que estive de passagem por Auckland na Nova Zelândia", conta ele. A garota autista é Anna, uma menina que desenvolve uma fixação por Narelle, a personagem principal. Esta é uma neozelandesa de 1,80m de ascendência maori e problemas com psoríase, cujo irmão desapareceu, repentinamente obrigando a moça a cuidar de seu café-restaurante, que enfrenta um processo de falência. O leitor aos poucos perceberá que não há nada de Brasil no romance — a não ser uma distante menção ao Maranhão, onde está outro elemento-escape da trama, o fugidio namorado jornalista de Narelle.
E como ela surgiu? "Narelle veio, sobretudo, da sonoridade contida no próprio nome (significa algo como 'alguém que pertence ao norte')", explica Scott. "Foi numa exposição sobre fotojornalismo australiano em um museu que descobri por acaso essa fotógrafa talentosa chamada Narelle Autio. O nome ficou na cabeça." Scott conta que a personagem veio de um contraste bem próprio da Austrália, entre o estigma de paraíso onde vive uma sociedade bem-sucedida e a existência de conflitos que ainda não foram bem equacionados. Alguns desses conflitos incluem a difícil relação com os aborígenes australiana e os vizinhos, os maoris neo-zelandeses — conflitos espelhados em um enigma oculto por Narelle. Que, assim como Voláteis e Habitante Irreal, é mais uma forte personagem feminina a comandar uma trama de Scott.
"Gosto dessas mulheres-abismo, desencadeadoras de microtragédias que as justifiquem sob a perspectiva literária, abrindo oportunidades sempre raras. Gosto de enfrentar essa inevitabilidade de maneira franca, mesmo que o preço a pagar seja alto demais, e superá-la, na medida do possível e do impossível também", reflete o autor, matando outra cerveja. Mas muito mais difícil do que chegar a Narelle talvez tenha sido compor Anna. "Foram quase dois anos de pesquisa intensa sobre autismo e a Síndrome de Asperger até constituí-la de modo plausível", afirma. Scott conta que tem recebido mensagens de pessoas que convivem com portadores de Asperger que confirmam o acerto em escolher Anna como "espelho" de Narelle. "O Asperger tem um universo sem regras e padrões para o qual a medicina ainda tem poucas respostas", diz.
Talvez ainda mais corajoso do que narrar sob o ponto de vista feminino, e sob o ponto de vista de uma garota com Asperger, seja narrar sob o ponto de vista de uma garota com Asperger que se apaixona por outra garota. "Suspeito que alguém possa rotular o livro de novela gay", brinca Scott, "mas o que está lá é o entendimento de que um momento especial de afeto, de encontro entre duas pessoas; se houver coragem, entrega, está acima das rotulações do tipo 'heterossexuais', 'homossexuais', 'bissexuais'”. O carimbo da inclinação sexual, diz Scott, é uma limitação, um enquadramento forçado e reducionista da complexidade humana.
O ano em que vivi só de literatura
Outro tema central em Ithaca Road é o exílio. Porém, pelo aspecto positivo: todas as personagens são de algum modo exiladas, o que as empurra sempre para a algum lugar. Este talvez seja um dado novo na obra de Scott. "Na história há muita inquietação, há pessoas expurgadas, gente expulsa, que a certa altura passam (ou simplesmente se acostumam) a se divertir com o que lhes coube e, porventura, acabou se transformando na sua normalidade – com pouquíssimo espaço e tempo para reclamações", explica o autor. "Hoje o exílio já não é o fim do mundo: faz parte do jogo, é algo com o qual as pessoas negociam sem dificuldade; mas às vezes também é um trem em alta velocidade, que não se consegue parar e pode a qualquer instante descarrilar, porque aniquila as possibilidades de estabilidade a longo prazo."
Uma curiosidade na obra de Scott é a separação Igreja—Estado — ou melhor, entre poesia e prosa. Sua poesia, que exibe uma sintaxe bem peculiar, afeita a asperezas e — já se disse deste advogado também filho de advogado — um léxico pouco "poético", é bem diversa de sua prosa, esta limpa, tonificada pela narrativa, em que as descrições tendem à exatidão. Nas duas, uma ausência estridente: um sotaque neutro, sem gauderismos. Depois de voltar com o último par de cervejas da geladeira na mão, ele revela: "Gosto de pasteurizar a linguagem, chapá-la até, mas de forma provocativa (não diante dos outros, mas diante de mim mesmo)", diz. "Sempre me diverti com as certezas de província, aquele tipo de convicção de turma que, numa ótica invariável e desastrosamente adolescente, sempre consolidam apenas um modo de encarar as coisas. Essa miopia tão valorizada em certos clubes literários não me interessa. Porto Alegre está lá, mas também acoplada a uma velocidade que me parece indispensável, a um liquidificar que consolida minha voz, porque é a maneira como a concebo. Escrever é um interminável processo de partidas", resume o gaúcho-carioca. Ele afirma procurar "rispidez" na prosa. Mas não sabe se ali há distanciamento do olhar e da experiência poética. "Gosto da linguagem poética comedida, avessa à sintaxe padrão. Busco uma despretensão em relação à linguagem e também em relação à narrativa. Imagino que tenha buscado ser menos lírico — mas daí, numa altura e outra, todas elas cruciais, ele, o lirismo, salta de modo duro e até calculista; e salta com força", defende.
Findo o hambúrguer, Morgana despede-se: vai para o ensaio da peça Big Jato, adaptação do romance homônimo do compadre Xico Sá — companhia certeira nas intermináveis noites cariocas. Romance concluído, Scott prossegue outros planos. Tem o romance O Ano em que Vivi só de Literatura, focado em suas aventuras durante 2011: "É uma sátira do mainstream literário brasileiro, tão frágil e precário, do qual vários de nós escritores fazemos parte", desenha. Acostumado a praticar dois livros simultaneamente, também rabisca o romance Marrom e Amarelo, baseado nos anos em que viveu com o irmão em Londres (André, mais escuro, tem o apelido de Marrom, enquanto Scott é o Amarelo; ambas alcunhas dadas pelo pai, ex-delegado de polícia venerado pelo escritor). Um terceiro projeto está em stand-by. Não me Mande Flores, graphic novel ilustrada por Eduardo Medeiros, que trata da formação clássica da banda DeFalla: Biba Meira, Edu K, Castor Daudt e Flavio Santos (Flu). Já escreveu o roteiro; falta a arte-final de Medeiros. Mas, por enquanto, esses projetos terão de esperar. O calor evaporou todos os líquidos do apartamento — e a solução é vencer algumas quadras em busca dos botequins da Cobal. Escondido ou exilado, o escritor está sempre no centro de tudo o que importa.