Ilustração por Janio Santos

 

Tantos foram os chutes, tanto amor dilacerado pela violência, tantas violações domiciliares. Tantas vezes nos perguntaram por eles, uma e outra vez, como se nos devolvessem a pergunta, fingindo-se de bobos, segurando o riso, como se não soubessem o lugar exato onde os fizeram desaparecer. O lugar onde juraram, pela honra suja da pátria, que nunca revelariam o segredo. Nunca diriam em que lugar da planície, em quais pregas da cordilheira, em que vaivém das verdes ondas extraviaram seus pálidos ossos.

Por isso, depois de tanto sacolejar a dor pelos tribunais militares, ministério de justiça, repartições e guichês de juizados, onde nos diziam: mais uma vez essas velhas vêm com a estória dos detidos desaparecidos. Faziam-nos esperar horas a fio despachando-nos com a mesma resposta, a mesma frase: senhora, esqueça, senhora, já chega. Não há nenhuma novidade. Devem estar fora do país, fugiram com outros terroristas. Pergunte no departamento de investigação da polícia, nos consulados, embaixadas, porque aqui é inútil.

Que passe o seguinte.

Por isso, para que a onda turva da depressão não nos fizesse desertar, tivemos que aprender a sobreviver carregando pela mão nossos Joãos, Marias, Anselmos, Carmens, Luizes e Rosas. Tivemos que segurar suas mãos contraídas e encarar sua frágil carga, caminhando o presente pelo deserto amargo de sua busca. Não poderíamos deixá-los descalços nesse frio, na intempérie, tremendo sob a chuva. Não poderíamos deixá-los sozinhos, tão mortos nessa terra de ninguém, nesse pedregulho baldio, despedaçados sob a terra desse lugar nenhum. Não poderíamos deixá-los detidos, amarrados, sob a lâmina gigante desse céu metálico. Nesse silêncio, nessa hora, nesse minuto infinito com as balas queimando. Com suas belas bocas abertas numa pergunta surda, numa pergunta espetada no verdugo que aponta. Não poderíamos deixar esses olhos queridos tão órfãos. Talvez aterrorizados sob a escuridão da venda. Talvez tremendo, como crianças ofuscadas ao entrar pela primeira vez num cinema, tropeçando, procurando uma mão no vazio para segurar-se. Não poderíamos deixá-los ali tão mortos, tão apagados, tão queimados como uma fotografia que evapora no sol. Como um retrato que se faz eterno, lavado pela chuva de sua despedida.

Tivemos que refazer noite após noite seus rostos, suas brincadeiras, seus gestos, seus tiques nervosos, suas raivas, seus risos. Obrigamo-nos a sonhá-los insistentemente, a lembrar uma e outra vez seus jeitos de andar, sua forma especial de bater na porta ou de sentar-se cansados quando voltavam da rua, do trabalho, da universidade ou da escola. Obrigamo-nos a sonhá-los, como quem desenha o rosto amado no ar de uma paisagem invisível. Como quem retorna à infância e se esforça por refazer continuamente um quebra-cabeça, um caça-palavras facial desbaratado na última peça pelo golpe estrondoso do tiroteio.

E mesmo assim, apesar do vento frio que entra sem pedir licença pela porta escancaradamente aberta, gostamos de dormir embalados pela tibieza aveludada de sua lembrança. Gostamos de saber que a cada noite os exumaremos desse pântano sem endereço, sem número, sem norte, sem nome. Não poderia ser de outra maneira, não poderíamos viver sem tocar em cada sonho a delicada seda gelada de suas sobrancelhas. Não poderíamos jamais olhar nos olhos se deixamos evaporar o perfume ensanguentado de seu hálito.

Por isso, aprendemos a sobreviver dançando o triste baile do Chile com nossos mortos. Os levamos para qualquer lugar como um cálido sol de sombra no coração. Vivem conosco e tornam prateados de lua nossos cabelos rebeldes. Eles são convidados de honra em nossa mesa e conosco riem. E conosco cantam e dançam e comem e assistem TV. E também apontam os culpados quando aparecem na tela da TV falando de anistia e reconciliação.

Nossos mortos estão a cada dia mais vivos, a cada dia mais jovens, mais frescos, como se rejuvenescessem sempre num eco subterrâneo que os canta, numa canção de amor que os renasce, num tremor de abraços e suor de mãos, onde não há como secar a umidade insistente de sua lembrança..

 

* O Informe Rettig é o relatório entregue pela Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, na qual se reconhecem publicamente as violações aos direitos humanos e crimes políticos ocorridos durante a ditadura militar de Pinochet no Chile. Rettig é o sobrenome do jurista que presidiu a comissão. Esse relatório foi parcial e não incluiu vários outros crimes políticos da época (nota da tradutora).

 

> Pedro Lemebel (1952-2015) foi escritor e artista plástico chileno, autor de Adiós mariquita linda

> Alejandra Rojas Covalski é tradutora e professora da Universidade Federal da Fronteira Sul