Nesta era de virtualidades, prevalece a tentação de resumir vidas, obras inteiras, movimentos e ideias em uma lista compacta de atributos. Pois é precisamente o que define a virtualidade, o virtual, essa armação composta que representa o atual-real. “O termo vir em Latim, ou seja, “homem sério”, “homem que reúne as qualidades bem vistas, desejadas e ideais”, deu lugar a uma grande rede semântica. Virtude e virilidade, virtual no sentido do que representa a essência, o que reúne os atributos mínimos para considerar-se adequado para ser uma representação.
Desde Fernando Pessoa até Jorge Luis Borges, a ideia do virtual, o representativo, o que se reflete como imagem representativa bastando seus atributos para sê-lo, foi central no século XX. A virtualidade como ideia apareceu antes da virtualidade mecanizada, que domina nossas vidas entre Internet, universos falsos fabricados por máquinas, até a última excitação mundial, não menos virtual, causada pelos sistemas de Inteligência Artificial, que devemos deixar claro – são mais virtuais que inteligentes.
A imagem de um mecanismo ou armação é frutífera para ter-se um quadro mais exato da virtualidade. Pela simples razão de que essa tal armação é e está sempre vazia. Pensemos num mecanismo bem-elaborado, ou seja, em uma armadura. Estendamos a mão ao elmo, levantemos a viseira, demos uma olhada, e outra, façamos soar o metal. O som rebate em nós, dentro não há ninguém, é tudo um fingimento, uma virtualidade que representa um cavaleiro ausente, ou melhor dizendo – inexistente.
Essa é precisamente a ideia principal do romance curto O cavaleiro inexistente (1959), de Italo Calvino. O protagonista, Agilulfo, existe somente em virtude (uma expressão digna de ser sublinhada) do cumprimento das normas cavalheirescas, do que se espera de alguém como ele. Portanto, o mesmo não existe. Existem somente as virtudes, o software do ser que não é mais do que um robô. O romance, de 1959, nos coloca diante de um autor que já sabia para onde ia o século XX, a Humanidade, a humanidade, o humano. Antes de ser inventada a tela, o mouse que controla os movimentos da mão real ao mundo virtual, antes da internet.
Humor, prazer em narrar, humanismo sem dogmatismos, uma imaginação sempre livre, e princípios firmes quanto ao labor do artista, do criador, do escritor. Esse é Italo Calvino. Mas não se deve cair na armadilha do resume contundente, que twiteia o complexo para dá-lo em doses homeopáticas de 128 caracteres que se consomem sem esforço e com menos efeito duradouro que o óleo de peixe. Para leitores deste 2023, ou seja, já quase no início do segundo quartel do século XXI, cabe mencionar algumas frases de seu desenvolvimento como homem e artista. Filho de cientistas, nascido em Santiago de Cuba, educado na Itália – São Remo, Turim – que se volta para a palavra escrita, transformando-se na ovelha negra de sua respeitável família. Comunismo juvenil, atividade heroica na resistência contra os nazistas, jornalismo, rejeição ao comunismo ao constatar a repressão na Europa Oriental e os crimes de Stalin, o levam a rechaçar todo partido político, solidificando sua posição de eterno outsider. Uma fase neorrealista, sem sucesso, seguida por uma paixão por contos folclóricos, que compila e reúne, até dar asas a tudo o que havia acumulado, entre reminiscências, leituras, fantasias. A partir daí cresce uma literatura chamada fantástica, que podíamos pensá-la em termos de fantasia de fábula. Cidades imaginárias, protagonistas pseudomedievais, viagens por mundos inventados. Virtualidades ricas de ideias, de alfinetadas nas verdades estabelecidas, a liberdade em seu melhor sentido real, tangível, profundo.
Ao falecer, de um derrame cerebral antes dos seus 62 anos, Calvino estava preparando uma serie de conferências que ia pronunciar em Harvard, no outono de 1985. Nunca chegou a dar essas conferências, mas foram publicadas, quase todas, em um livro póstumo – Seis propostas para o próximo milênio (Companhia das Letras, 1990). É uma obra essencial, em todos os sentidos. Calvino formula seis propostas: nos recomenda ser leves, rápidos, exatos, visíveis, múltiplos e consistentes. Nada pode estar mais distante da virtualidade. Isso nos diz um escritor que afirmou que para transformar-se no escritor que queria ser, que sentia que podia ser, começou a fazer o que lhe era mais natural, seguir suas recordações de infância, e inventar o livro que ele mesmo gostaria de ler, não o que o mundo esperava de Italo Calvino.
Ele conseguiu fazer isso várias vezes, ao longo de muitos contos, romances, ensaios. Nada mais real podia ele haver nos deixado.