go set a watchman A

 

Esta não é uma história sobre heróis, anti-heróis e, menos ainda, vilões. É sobre as pessoas que vivem na linha de tiro entre esses personagens cristalizados em nossas narrativas cotidianas e sobre o espaço de concessão entre nossa formação moral e o funcionamento social. Jean Louise, a personagem central de que se vai falar aqui, é alvejada de todos os lados. Sua consciência e a razão ética em um front, o sentido de pertencimento à família, a um espaço, em outro. Jean Louise é uma personagem de mais de 50 anos atrás, quando não havia redes sociais ou comentaristas de portais de notícia. E, no entanto, a distância entre o seu Alabama-EUA no pós Segunda Guerra e a fila na padaria de qualquer bairro classe média num Brasil de ontem, hoje e amanhã se mede com uma trena de menos de três metros. Jean Louise está em todas as pessoas desconfortáveis no sofá, com as opiniões fundadas em crenças cegas e segregacionistas. Ela está no movimento que precede cada amizade desfeita no Facebook e, particularmente, está no momento em que se decide relevar o outro em nome de uma ceia de Natal sem grandes polêmicas. 
 
Escrito em meados dos anos 50, Vá, coloque um vigia (Go set a watchmnan no original), o livro que tem grandes chances de fechar o ano com o primeiro lugar entre os títulos de ficção mais vendidos nos Estados Unidos, é, dentro e fora de suas páginas, um debate atual e necessário. Mas o caminho que as críticas sobre esse lançamento estão tomando segue a direção errada. Muito se fala sobre a decepção de ver agora exposto como racista um personagem por tantos anos emoldurado entre sólidas madeiras da retidão ética, da Justiça e do discurso racional pela igualdade, quando o mais tocante de tudo não é a queda da máscara, e sim ter de admitir que fomos nós quem modelamos essa máscara no começo de tudo, como se instintivamente estivéssemos negando que, por trás dela, esteja vivo algum reflexo bisonho nosso e a inabilidade de lidar com esse espelho. 
 
A autora do romance em questão, Harper Lee, o escreveu antes do primeiro e único livro que havia publicado até agora: O sol é para todos, clássico absoluto da literatura norte-americana, lido por várias gerações de jovens e adultos brancos que viram na figura do advogado Atticus Finch uma espécie de remição dos pecados, uma mea culpa por todo o sangue jorrado em plantações de algodão. O homem branco que vai dar o seu melhor para, num julgamento fadado ao fracasso, salvar um homem negro, já que este sozinho nunca poderia ser o mestre de sua própria redenção. Quando o romance chegou às livrarias em 1960, já aconteciam nos Estados Unidos as primeiras reuniões do Movimento dos Direitos Civis. Dois anos depois, quando o livro foi adaptado para o cinema, com aquela câmera levemente inclinada de baixo para cima, jogando um spray de grandiosidade no Atticus Finch de Gregory Peck, veio a imagem que faltava para condensar um personagem didático que ensinasse à população branca o que estava por vir. O sucesso do livro e do filme jogaram sobre aquela jovem autora holofotes tão pesados que ela decidiu não mais publicar nada em vida. O sol é para todos seria sua única obra. 
 
Mais de 50 anos depois de todos esses eventos, em um movimento muito suspeito, a advogada da escritora afirma ter “descoberto” o manuscrito e conseguido autorização por escrito da própria Harper Lee, que muitos afirmam estar senil, para publicar este que teria sido um livro escrito antes do seu one and only best-seller. Numa história que, narrativamente, se encaixa como uma continuação temporal dos acontecimentos de O sol é para todosVá, coloque um vigia só não havia sido publicado porque a então editora de Lee, Tay Hohoff, teria aconselhado a escritora a lançar primeiro o manuscrito que partia do ponto de vista de uma Jean “Scout” Louise ainda criança. Sabiamente, a senhora Hohoff viu naquela primeira pessoa pueril, encantada com a aparente sobriedade e gentileza de seu pai, a chance de criar mais um paladino da América Livre. O romance que chega agora às livrarias traz uma Jean Louise adulta que, após longa temporada em Nova York, volta para a cidade fictícia de Maycomb, Alabama, e descobre que não apenas seu pai, mas todas as pessoas que ela amava e tomava como “os seus” participam de grupos organizados para conter os avanços de direitos da população negra. E, pior, constata que o mesmo homem que ela havia mantido num pedestal por tantos anos seria membro até do Ku Klux Klan.
 
Em Vá, coloque um vigia, há uma afirmação simplória, mas bastante elucidativa sobre o caráter do romance, em que se lê: “Preconceito, uma palavra suja, e fé, uma palavra limpa, têm algo em comum: ambas começam onde termina a razão”. Simplória porque a “razão” é, com mais frequência do que nossa herança iluminista supõe, ideológica, cede aos encantos do poder. Para vários personagens do livro, por exemplo, é racional supor que os negros são intelectualmente mais atrasados que a população branca. É preciso pontuar que tal afirmação não chega a ser contestada pela protagonista do livro, a jovem Jean Louise, que se diz, numa falácia perpetuada até os dias de hoje, “colorblind”. Ou seja, ela teoricamente não vê distinção de pele. Na prática, no entanto, mesmo estruturalmente abalada com o desvelamento da intolerância ao redor, ela é capaz de vir com diálogos do tipo “não é que eu vá me casar com um homem negro”. Escrito nos anos 50, de nenhuma forma esse tipo de frase seria tomado como uma postura preconceituosa pela branca crítica literária de então. Deslocada, sem edição, para os dias atuais, ela reverbera bastante com o discurso do “eu não sou racista/machista/homofóbico, mas...” 
 
A razão que supostamente delimita as fronteiras do preconceito e da fé não é, portanto, uma estátua renascentista inabalável, como o livro coloca em vários momentos, de forma até ingênua. Razão é construção dedutiva elaborada, muitas vezes, por meio de abstrações. Vá, coloque um vigia entende isso apenas em dois momentos pontuais. Primeiro quando Jean Louise sai à procura de Calpurnia, a empregada negra da família que cuidou dela e de seu irmão “como se” fosse mãe deles e pergunta se ela, agora aposentada, a odeia. Racionalmente, Calpurnia teria todos os motivos históricos para exercitar esse ódio ao longo de sua vida, mas nada é tão simples assim no que tange ao afeto. No entanto, a despeito de qualquer laço emocional que tenha sido construído sob uma relação de poder, a ex-empregada deixa claro que aquele espaço dos Finch nunca foi o seu espaço, e que com ele não interessa ter mais contato, diálogo, concessão. O preconceito, a fé e a razão significam uma coisa só para Calpurnia: todos operaram para negligenciar não somente ela, mas também seus filhos e netos. 
 
Por fim, no último capítulo, um desfecho anticlímax desfaz esse binômio da razão x preconceito-fé. Jean Louise se rende. Acredita que, apesar das sérias divergências com o pai, ele ainda é um “homem de bem”, para usar expressão contemporânea popular. E que ela precisa aprender a conviver com sua família da forma que for possível, leia-se, com ela (e somente ela) anulando um pouquinho aqui e um pouquinho ali a sua visão de mundo. Para aceitar o pai novamente, Jean Louise antes aceita seu próprio erro, de quem passou toda a infância e adolescência construindo um personagem fictício, o que de certa forma redime o personagem de Atticus, culpabilizando a protagonista por não ter visto o que sempre esteve bem diante de seus olhos. Em tempo: um artigo publicado recentemente no site Jezebel pela escritora Catherine Nichols indica todos os trechos de O sol é para todos em que Harper Lee dá pistas de que o advogado era, já ali, racista.
 
“O momento em que seus amigos mais precisam de você é quando eles estão errados, Jean Louise. Eles não precisam de você quando estão certos”, diz o tio de Jean Louise quando ela busca achar saídas para o dilema entre rejeitar seu pai por completo e voltar para a Nova York liberal ou permanecer em Maycomb e lidar com a sociedade sulista-racista. É um conselho bonito, esse do tio dela. Podemos aplicá-lo em diversas situações, usar profeticamente em conversas de fim de noite. Mas há algo muito perigoso nele. Lido pelos olhos de uma sociedade que inegavelmente amadureceu sua articulação política e está cada vez mais atenta às armadilhas da afabilidade no discurso de quem sempre deteve o poder, uma frase como essa, onde se equivale “errados” a “membros do KKK”, deixa pouco espaço de negociação. O que Harper Lee parece colocar então é que não importa o quanto as convicções sejam opostas, sempre haveria brechas de diálogo. A importância da publicação neste momento de Vá, coloque um vigia está bem menos na revelação do caráter de Atticus, tampouco na mensagem apaziguadora de sua protagonista, mas sim na pergunta: em função de nossa sociabilidade cada vez mais mediada por redes virtuais, nas quais é fácil criar novos grupos de pertencimento, até que ponto as pessoas estariam dispostas a ceder a tamanho abismo moral? 
 
Harper Lee, que em O sol é para todos conseguiu criar uma relação entre medo e ignorância a partir do uso narrativo de fantasmas e sombras que perseguiam as crianças, constrói raciocínios ingênuos nesse “novo” romance. A elaboração dos personagens é certamente bem mais fraca (pesa a ausência da editora/editor) e, como diria a escritora Ursula Le Guin, chega a ser implausível que Jean Louise, tendo crescido num Alabama completamente racista, não herdasse ao menos a compreensão de ter vivido nesse ambiente preconceituoso e se tornado um pouco empática a ele. Mas apenas o fato de que o livro agora publicado, um romance que literalmente desmascara o espólio racista do Sul dos EUA, terminou sendo negligenciado em nome de outro livro que romantiza esse legado, fala muito sobre as intenções de um mercado editorial que, tal como as pessoas da sala de jantar, sempre esteve mais interessado em agradar que em gerar atritos. Não que a recente publicação tenha surgido com a nobre intenção de criar qualquer debate, pois tudo na história desse “manuscrito achado” rima com ambição comercial. Mas não deixa de ser curioso assistir ao esfacelamento de um mito e levantar questões que a Harper Lee dos anos 50 possivelmente não imaginava que iriam ganhar peso entre leitores de hoje. Questões como o machismo, muito presente em ambos os romances, e mesmo uma certa fluidez de gênero da protagonista (alter ego de Lee) que, quando criança, sempre se identificou muito mais com elaborações de corpo masculinas que femininas. 
 
Entre altos e baixos, ecoa, ao fim da leitura, uma assertiva de Atticus Finch que, questionado pela filha sobre suas convicções, diz: “[...] hipócritas têm tanto direito de viver nesse mundo quanto qualquer outra pessoa”. Jean Louise/Harper Lee não consegue rebater o pai, tão gentil, tão atencioso. Porque ela não se dá conta de que são dos hipócritas o governo do mundo. Ao tentar vitimizar um lugar de fala que sempre foi de privilégios, Atticus usa o velho truque da psicologia reversa (e, neste caso, perversa) e adquire feições muito semelhantes às de pessoas com quem volta e meia esbarramos. Atticus está na sala. Alguém vai se retirar?