Britânica de origem nigeriana, Lesley Nneka Arimah estreou na literatura com O que acontece quando um homem cai do céu (Ed. Kapulana)
Chapei no livro de Lesley Nneka Arimah, O que acontece quando um homem caiu do céu (Kapulana). De 12 contos, pelo menos oito são obras primas. Tu bambeia, se espanta e arde as narinas. Escritora minuciosa do desespero, contempla ziquiziras e reviravoltas do Tempo. Faz rir, morder o lábio e xingar sussurrado quem tu passou a amar em poucos parágrafos. A criatividade da autora dá xeque-mate e vibra mesmo é no domínio do trivial, do que é improvável mas lógico, quando empunha sua lupa diante do corriqueiro que adentra suas estórias insólitas ou de ficção científica. Ah... como Arimah passa longe do maniqueísmo. Provavelmente, aqui seria intragável a uma determinada patrulha ideológica ou, propagada com a foto muito citada e nem lida, já colocada na vitrine dos slogans, mesmo que isso a desagrade, como denota em suas entrevistas quando se apresenta contrária ao didatismo que parecem esperar de sua obra, alérgica aos enredos previsíveis. É muito capaz que no Brasil a enganchem na gaveta das demandas e cartazes rasos que sempre destinam às artistas africanas e afro-brasileiras, seja a da palidez racista ou a de quem repete chavões compreensíveis, mas óbvios e insuficientes nas lutas contra a morte simbólica e social que acomete nossa estética política.
Uma esgarçada noção de representatividade, superficial e estrita apenas ao que seja presença ilustrativa pra compor foto na coluninha, cadeira no salão ou um canto de câmera não a contempla porque a grandeza de sua obra é a linguagem, a representação, a inventividade, a sagacidade e a exatidão da poesia afiada dos detalhes. A enxada varando e futucando a humanidade de suas personagens maliciosas, invejosas, truqueiras, impiedosas ou hesitantes diante de miúdas e acachapantes injustiças e prazeres. Lesley, sua obra e nome não sejam estofo para um minuto no show ininterrupto dos graúdos que faz tempo já sabem assimilar a cobrança de “diversidade” e “representatividade”, anunciando um ou dois peões novos, mas mantendo o mesmíssimo tabuleiro, regras e jeitos de jogar. Também certamente será grampeada na sanha de exotismo que o circuito editorial dos iluminados letrados daqui não consegue largar, porque o carrapato da ignorância sobre o que seja negro e não se congela em folclórico ou tribal ainda estoura, mas não desgarra. O que pouco sabem e tanto querem limitar é que conheçamos uma letra dessas eletrizante e também serena, de inteligência e sensibilidade siderais, firmada num cosmopolitismo e nas frestas urbanas que conhece os passos e angústias de migrantes que trocam suor, tédio ou solidão por dólares nos EUA ou na Europa.
Lesley Arimah é da estirpe de Machado de Assis, de Chester Himes e Ahmadou Kourouma pela ironia que sopra acendendo e deslindando o patético das vaidades. Ou pela às vezes inusitada sátira até quando mira os abismos e o desespero de quem só tem a queda como movimento e a resignação para respirar, já quase asfixiada. Recorda Toni Morrison por mesclar ao seu estilete a profundidade de uma escavadeira fina subindo com lanhos e coágulos da complexidade cativante e às vezes asquerosa da intimidade do ser gente, mas mantendo o primor da mestra estadunidense em demonstrar as garras e redemoinhos das estruturas. Ou seja, critica os alicerces do sistema com argúcia, mas não passa pano pros gestos e responsas de suas personagens. Não tutela nem escarra, mas em frases lapidares que seriam cristais de poemas clássicos distribuídos em seus parágrafos, deixa nítido como os contextos estão arrumados pelos dentes pontudos e unhas de sempre na família, na escola, na aldeia, no estado e no mercado. Assim, sem cartilha nem moralismo sopra sua empatia aos dramas das mais fracas chicoteadas pelos pilares da cidade ou estapeadas pela arrogância de quem tem costas quentes, mesmo que apenas no próprio barraco.
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Ainda no campo das grandes referências, fluir na obra de Arimah lembra a altura das ideias e do faro de Célestin Monga, que detalha filosoficamente em Niilismo e negritude relações pragmáticas que guiam quem ainda pode rastejar ou quem domina a lei, mesmo que nos pequeninos latifúndios traçados no cotidiano de casa, da feira, das festas, da escola ou dos escritórios africanos. Com coloridas réstias de alegria em pleno pesar cotidiano, com as tramas por legados de potência, capta-se no que as íris e as linhas de Lesley Arimah filtram um princípio de Axé e também de Carpe Diem. Um pelo cultivo persistente do princípio da Força Vital, outro pelo hedonismo nas beiradinhas que mal acolhem quem pode desacreditar do amanhã.
Várias histórias traçam os conflitos rasgados entre mães e filhas, às vezes borbulhando sob uma manta hipócrita de mansidão. O que acontece quando um homem cai do céu é um livro lambuzado de crueldade e de desentendimento de senhoras que botam suas adolescentes ou pequenotas pra correr, voar ou tomar literais tombos violentos se vislumbrarem aí uma negociata, um processo. Mães já enterradas que retornam à penteadeira pra remexer o quarto e espezinhar mais as meninas que ainda lambem rancores. Mães que aprimoram a decepção e o escárnio como a ponte entre elas e suas jovens. Porém, há raras e estupendas personagens em seu livro que, além de lidar sozinhas com o peso da culpa e da subsistência da família, nutrem afeto por suas crias, às vezes habitando de favor no redemoinho da humilhação que vem de irmãs ou cunhados. Acolhidas entre ferros e lâminas, colocadas em sinucas de bico, persistem contra a fragmentação familiar até onde conseguem, vitaminadas pelo mel do amor infantil que pode se tornar repentinamente um adeus e um resto de tempo seco, vencido.
As coadjuvantes das histórias são escabrosas. Pulsam sutis e delineiam sustos, impelem atos lastimáveis das protagonistas ou arrombam rumos retos dos contos enquanto sussurram, traquinam ou apresentam espaços que já percorreram com façanhas ou vergonhas. Às vezes aparecem no futuro, nas suposições oniscientes de Lesley Arimah, que sabe trançar épocas pra entendermos cada uma delas. Suas coadjuvantes são a modelagem da argila que quebra na mão de quem quer chegar mais perto. Nas passagens contadas ou levadas por elas às protagonistas, a autora rege seu talento imenso em pincelar com frieza detalhes febris ocultos sob a melancolia e a rotina. Homem, escasso no livro, é pastor abusador sexual, é veterano de guerra distribuindo histórias e ternuras soturnas, é o riquinho mimado que assassina ou é pai pra comover. Assim ocorre no conto Luz, que a escritora já inicia nos apresentando a lástima do fim da história, quando o pai “murchará como uma planta sedenta” após toda sua luta e graça solitária por passagens deliciosas, estabanadas ou habilidosas e tido como impotente para manter sua filha consigo diante das pressões de quem o julga despreparado para a função: “Quando Enebeli Okwara soltou a filha no mundo, ele não sabia o que o mundo fazia com as meninas. Ele não sabia quão rápido o orvalho dela evaporaria, como ela retornaria oca, sem as suas melhores partes”.
Em Acidente, outra história formidável, calmamente eletrizante, pinta um final magnífico sobre as estripulias do destino, após conhecermos mãe e filha numa inesquecível relação de subsistência orquestrada em supermercados: “Você aprendeu a cair por uma questão de autopreservação, já que sua mãe empurrava muito forte, derrubava de muito alto. Vocês se sustentam dessas quedas há anos, às vezes ela caía, mas, na maior parte das vezes, era você (…). Cair é uma ciência. Não se pode tropeçar no próprio pé, cair com a cara no chão, e esperar uma recompensa. Primeiro, encontre (ou crie) algum tipo de poça. Fure o filme plástico de um ou dois pacotes de frango congelado e, discretamente, deixe os fluidos se acumularem no chão. Quando a queda iniciar, pense nela como uma dança (...) para melhorar o efeito, faça uma criança chorar junto ou, melhor ainda, solte-a durante a queda, deixe-a escorregar do seu quadril. O bônus é que os machucados dela vão ser verdadeiros (…). Você prefere acreditar que aquela primeira queda, a que deixou uma órtese permanente em seu tornozelo, foi real. Que ela estava tentando alcançar a maior e mais bonita berinjela da prateleira, mas tropeçou e, merda, deixou o bebê cair”.
Em outro conto, Descontrolada, mergulhamos na espinhosa dissimulação familiar com Ada, uma garota que desobedece a moral dos sistemas educacionais dos EUA antes de ser exilada por sua mãe à Nigéria, onde a nova casa tida como lar aprumado e afável será tanto uma tutoria quanto um vexame. Ada ali pareia com a prima Chinyere, propagada como angelical, mas que tem a mentira e a coitadice grudada nos dentes, além da canga já acostumada às pancadas de sua mãe, Ugo:
“Chi-chi, cuida do seu irmão – a Tia Ugo disse, e pelo ritmo do pedido eu percebi que era usual. O menino tinha um ano de idade, olhos grandes e era bem fofo. Minha mãe tinha avisado para acompanhar o fingimento em público, mas eu não achava que mesmo na privacidade da casa nós fingiríamos que o bebê não era filho da Chinyere”.
Já sabemos que o qualificado volta e meia como “fantástico”, também em literatura, pode se referir a uma gravura básica dentro dum sistema de compreensão histórica que não cabe nos modelos de racionalidade ocidental e colonialista. Lidando com a ficção científica, mesmo não sendo isso o principal e mais atrativo em sua obra, a autora cria ambientes e épocas bizarras para nos pinicar com arestas e labaredas finas, quase imperceptíveis, de tão comuns. Apresenta sonhos e vergonhas, ganância e solidariedade, em condições extravagantes para escancarar como somos cobertos de valores estapafúrdios e gestos que de canibalescos só faltam usar a boca. O conto Quem vai te receber em casa seria o mais engenhoso e tocante dos seus chamados contos fantásticos. Nele, cabe uma versão de ancestralidade e de tempo que conforma, além dos que já se foram, também os que já estão aqui antes mesmo de chegarem. Ogechi é uma moça oprimida e endividada pela patroa que é dona também do muquifo onde a jovem sorve sua raiva e desonra. Como todas as futuras mães dali, é necessário manufaturar um boneco que, antes de ser parido e tornar-se gente, será por um ano embalado, sustentado e amadrinhado nos ônibus pelas mulheres da comunidade, com a cantoria de pergunta-resposta que intitula o conto. Ogechi, entre mil embaraços e atribulações, aninha seu bebê antes do nascimento que parece nunca chegar, o guardando de maus olhados enquanto seu algoz, nomeada Mama (?!) lhe cobra com sentenças tão improváveis, diretas e perfeitas quanto algumas falas infantis: “Então me pague com a sua alegria, menina” ou “Será que eu posso pegar um pouco de sua felicidade?”. E que golaço Lesley Arimah compor uma jovem que é mártir, que é sanguessugada até a medula, mas que constrange prazerosamente ou estapeia quem parecer mais frágil. Que é nitidamente interesseira ao expor o desejo de ser mãe de uma prenda cara porque só assim seria muito confortada no futuro, o que implica apostar certo no material da criança a quem também irá cobrar forte:
“Havia motivos para Ogechi levantar o lenço e não deixar Mama ver a criança. Primeiro, ele seria feito com itens encontrados na loja de Mama e, mesmo que eles fossem lixo, Mama os adicionaria ao seu registro de débitos. Em segundo lugar, todo mundo sabia como era arriscado fazer uma criança com cabelos, impregnada com a identidade da pessoa de quem tinham caído. Mas uma criança feita dos cabelos de várias pessoas? Era proibido”.
Lesley Arimah abre o ser humano como uma cebola. Despetala, corta, pica e não perdemos seu ardor. Conta histórias com excelência e seus enredos magnetizam quem ouve, como tirei a prova lendo em aulas pra turma e em casa pro meu guri. Mas como ela domina sobretudo a linguagem da escrita por seus ritmos e imagens, referências e funduras, encanta a cabeça e infla o peito de quem a lê em silêncio, desenhando no seu tempo e na sua mente as figuras e passagens que nos entortam no desfrute nem sempre doce. Com apenas este livro, compilação, Lesley Arimah já é uma das grandes.
* Allan da Rosa é escritor, angoleiro, arte-educador popular. É autor de Reza de mãe