Yehuda Amichai (1924-2000) tornou-se, a partir dos anos 1960, o mais aclamado poeta de língua hebraica em Israel. Sua poesia faz referência a milênios de tradição poética hebraica, retoma temas bíblicos, elementos da tradição litúrgica e, ao mesmo tempo, expressões, aspectos e ideias características da modernidade e, mais especificamente, da realidade israelense.
Deste jogo entre o hebraico das velhas sinagogas europeias e o das ruas da Jerusalém do século XX, criam-se os paradoxos de uma obra poética que explora sempre o contraste, justapondo o sagrado e o profano, o milenar e o efêmero e, sobretudo, a visão de mundo respaldada pela tradição religiosa e aquela típica da modernidade, marcada pelo desencantamento e pelo ceticismo.
Estes dois estratos opostos da poesia de Amichai refletem sua trajetória de vida, marcada pela emigração da Alemanha para o que era, então, a Palestina britânica onde, a partir do início do século XX, a língua hebraica, depois de passar milênios confinada aos âmbitos da vida espiritual, novamente ganhava as ruas, renascendo como língua da vida cotidiana, das ruas, das casas e das escolas.
Nascido em Würzburg, na Bavária, numa família ortodoxa que havia séculos estava radicada nesta cidade cercada por montanhas e florestas, recebeu o nome Ludwig. Foi educado numa escola religiosa. O sobrenome de sua família era Pfeuffer. Seu pai destacava-se por sua atuação filantrópica e por sua observância estrita aos preceitos da tradição judaica. Era, também, um cidadão alemão devotado à sua pátria, que lutou pela Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, tendo sido condecorado com a Cruz de Ferro.
A simbiose entre judaísmo e germanidade deste pai tornou-se uma identidade cultural impossível a partir da ascensão do nazismo na Alemanha, em 1933. A família deixaria a Würzburg natal, na qual se sentira perfeitamente integrada, emigrando para a então a Palestina britânica, em 1936.
Ludwig tinha 12 anos de idade. Passou a empenhar-se, como os demais jovens de sua geração, em integrar-se à vida israelense, que tinha em vista a criação de um Estado nacional para os judeus, fundamentado na adoção da língua hebraica como língua do quotidiano, no abandono das formas de pensamento e de comportamento típicas dos judeus europeus, e num modelo heroico concebido no âmbito da ideologia da ressurreição nacional, o do “novo hebreu”, ao mesmo tempo soldado e agricultor, poeta e homem de cultura, destinado a escrever um novo capítulo na história judaica.
Seu pai suportou até o fim da vida o destino de um homem cuja identidade e cuja cultura foram destruídas, e cujo exílio não tinha remédio. Pois Israel, e o embrião do Estado de Israel formado sob o mandato britânico na Palestina, fundamentavam-se numa visão de mundo laica, antirreligiosa, de tendência socialista e, sobretudo, no abandono do legado cultural judaico-europeu.
A oposição e o diálogo com as ideias e com a visão de mundo do pai é uma das bases da obra de Amichai – que resolveu mudar de nome aos 20 anos de idade, para expressar seu desejo de integração completa no mundo novo que estava sendo construído no lar nacional judaico.
Este abandono da origem, porém, revela-se menos completo do que seria de se imaginar à primeira vista. Pesquisas recentes, levadas a cabo pela professora Nili Scharf Gold, da Universidade da Pensilvânia, mostram que, na verdade, Amichai permaneceu, ao longo de toda sua vida, ligado à língua alemã e à poesia alemã, e que, frequentemente, escrevia seus versos primeiro na língua da casa paterna, para posteriormente vertê-los ao hebraico – um segredo evidentemente guardado a sete chaves no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, quando a língua alemã e a Alemanha, por motivos evidentes, se tornaram tabus em Israel.
O refinamento do hebraico de Amichai, assim, estrutura-se também, em parte, no conhecimento e na ligação do poeta com os grandes clássicos e com o modernismo na literatura alemã. E sua poesia é, sobretudo, um gesto de tradução, que trata, também, da impossibilidade da tradução.
A tradução, ou melhor, transcriação, desses versos em língua portuguesa, e a seleção realizada por Moacir Amâncio, ele mesmo poeta que também cria poesia hebraica, preserva o brilho e a argúcia do original, ao mesmo tempo em que cria novos sentidos, iluminando os versos de Amichai por novos ângulos.
Esta preciosa antologia vem em boa hora para aproximar o leitor brasileiro de um dos autores mais originais e instigantes da milenar e sempre renovada poesia hebraica.