Resenha J P Zooey Divulgacao outubro.20

 

Com frequência, obras ditas experimentais são, na verdade, um jogo cujas regras o leitor tem dificuldade de entender com rapidez. Sol artificial, primeiro livro do argentino J. P. Zooey (foto), pode ser um desses casos, revelando-se um passatempo mais audacioso do que o leitor poderia imaginar. Publicada em 2009, a obra, composta de doze narrativas curtas e intrigante para seus leitores à época, é agora lançada no Brasil pela DBA Editora, em tradução de Bruno Cobalchini Mattos. O mistério dessa publicação começa já pelo nome de seu autor, que não tem origem hispânica e, ao mesmo tempo, remete-nos a Franny & Zooey, de J. D. Salinger. Trata-se, em realidade, de um pseudônimo, que suscitou a curiosidade dos críticos desde o começo da carreira do escritor, algo semelhante ao caso de Elena Ferrante. A diferença é que o argentino Zooey deu as caras por fotos suas em jornais ou pela internet afora após o período de dez anos. Manteve-se, no entanto, a distinção entre sua identidade como o professor universitário Juan Pablo Ringelheim e a autoria de seus livros, sua “não identidade”, como definiu em entrevista.

Além do falso anonimato, nota-se que o autor faz questão de se colocar logo no início de Sol artificial. A primeira narrativa, A carta, inicia-se com a frase “Eu sou J. P. Zooey e certa vez recebi uma carta” — logo uma carta, item tão pessoal da comunicação entre as pessoas. Dessa maneira, parece criar uma relação íntima com o leitor, abrindo mão de parte de sua própria privacidade. No entanto, essa carta não é de sua própria autoria, mas de uma outra pessoa, referida apenas como “o autor”. É como se Zooey mantivesse seu anonimato e o daquele que se correspondeu com ele, e faz isso como um crítico interessado sobretudo nas intenções do autor. Ao fim, revela-se que a carta foi enviada para si mesmo cinco anos antes. Esse primeiro texto é ilustrativo do jogo de identidades e ideias que permeia todo a obra. Por ele o autor anuncia que seu livro seria, na verdade, uma compilação de textos de juventude, da época em que mandou a carta para si mesmo, e outros mais recentes.

Na narrativa seguinte, O refrão, destaca-se de imediato um dos principais temas da obra: a tecnologia. Esse texto também é o primeiro que apresenta o formato ficcional de reportagem com entrevista, majoritário no livro. Aqui, o entrevistado é “Umberto Matteo, imigrante do futuro”, um homem que é tratado como doente, internado em um hospital psiquiátrico e objeto de pesquisas de psicólogos da Universidade de Buenos Aires. É uma de várias personagens que foram fortemente afetadas por alguma inovação tecnológica e que tentam relatar essa experiência. O impacto pela tecnologia também está elaborado em O melancólico grito de um Giga prestes a cair da cabeça de um alfinete, construído no formato de reportagem com entrevista como o anterior, apesar do título que soaria deslocado na maioria dos jornais. O começo dessa narrativa é semelhante a um nariz-de-cera, expressão do jargão jornalístico que denota uma abertura prolixa que atrasa a entrada no assunto de um texto. Aqui a conversa é com o doutor Diego Grenstein, que libertou “o primeiro campo de concentração informático”, “descoberto no interior de um computador doméstico na Polônia, em 27 de janeiro de 2007”. O entrevistado responde questões como um cientista e um investigador criminal, explicando como bytes são acumulados e duplicados em um campo, em condições que os levam à fusão em uma massa com “a aparência de um sol em miniatura, com uma concentração de energia poderosa”. Esse agrupamento, o Giga, em letra maiúscula, emite uma frase aos cientistas: “queijo de pássaro azul”. Esses elementos, certamente bastante enigmáticos, são bastante repetidos e reelaborados ao longo de Sol artificial, criando-se um sentido pela relação entre as narrativas.

Para além da tecnologia, tema também em O deus do oceano lúdico, A questão Hamlet e A pergunta pelo click, outro assunto de relevância é a filosofia. Em , por exemplo, a terminologia própria do pensamento de Deleuze e Guattari é usada pelo autor para elaborar um texto que funciona como um ensaio ficcional. Com exemplos inusitados e conclusões exageradas, ele emula, de certa maneira, um tipo de filosofia que se tornava mais popular em universidades latino-americanas. O texto também se torna na prática uma prova do interesse do autor por “filosofias estranhas e terapias para o mundo, de boca fechada”, como o Zooey de cinco anos antes diz em carta para o Zooey autor de Sol artificial. Em conjunto com a religião, o pensamento filosófico também figura em Tenho três filhos, Morrer no céu e Como um sol artificial. Nesses textos, além da tecnologia, são elementos importantes a televisão, graças a “reality shows como Big Brother”, e a internet, presente pela “moda dos blogs” e pelas “autobiografias precoces”. Zooey é um autor que, tendo se iniciado em blogs, dialoga o tempo todo com esse formato mesmo em livro.

É no mínimo curioso que Sol artificial seja publicado no Brasil precisamente neste ano, quando a China anuncia o lançamento de um dispositivo, o tokamak HL-2M, popularmente chamado de “sol artificial”. Ele será capaz de produzir uma fusão nuclear, como faz o sol, que talvez possa ser aproveitada como fonte de energia limpa. No livro de Zooey, esse dispositivo é mencionado indiretamente, por referências à fusão, a um sol artificial ou à energia, como vimos. Apesar de sua brevidade, Sol artificial tem uma concentração de ideias de alta complexidade, em um evidente contraste entre o avanço científico e tecnológico e os problemas sociais e políticos. Dez anos após sua publicação, dada a nossa realidade, esse jogo parece se tornar cada vez menos estranho.