A morte do pai e a investigação sobre o que produzem as relações de filiação são temas vastamente explorados em literaturas de diferentes países. Na década de 1980, na França, houve uma multiplicação de obras, ficcionais ou não, buscando fazer arqueologias de filiações, que encontraram enorme sucesso de público e crítica.[nota 1] Fazem parte do fenômeno as inúmeras autobiografias e autoficções do período, e, no campo das ciências humanas, o interesse surgido por trabalhos em micro-história e de sociabilidade cotidiana.
Nessa paisagem destaca-se por algumas particularidades relevantes o livro O lugar, de Annie Ernaux. Lançado originalmente em 1983, ele acaba de ganhar, pela recém-criada editora Fósforo, uma tradução a cargo da poeta Marília Garcia, responsável também por traduzir em 2019 o celebrizado Os anos (Fósforo Editora), da mesma autora. O lugar recebeu o Prêmio Renaudot em 1984 e marca uma virada no projeto literário de Ernaux. Se, em seus três livros anteriores, a motivação autobiográfica já estava presente, ela aparecia combinada com elementos de ficção e com a forma romance, que a autora abandona ao escrever sobre a morte do pai. Tendo se distanciado dele e do meio popular em que vivia, após sua ascensão social, ela percebe uma resistência, nos sentidos físico e moral do termo, em adotar recursos retóricos e narrativos comuns ao romance para contar essa história. Se o fizesse, seria como trair o pai uma segunda vez. A primeira foi com sua partida e ruptura com “o lugar”, em toda polissemia da palavra.
É, afinal, com uma citação de Jean Genet na epígrafe, “escrever é o último recurso quando se traiu”, que ela inaugura o relato. Já na primeira cena, delineia o ritual de passagem que firma, com lastro institucional, a separação que a autora vinha experimentando do seu meio de origem, por sua progressiva escolarização. Trata-se do concurso de admissão para professora de segundo grau, que, na França de 1967, é passaporte para a frequentação de um ambiente burguês e intelectual. Sente, entretanto, raiva e vergonha, com a divulgação do resultado. Dois meses depois, seu pai, sucessivamente operário agrícola, trabalhador de fábrica e pequeno comerciante em um café-mercearia de uma cidade de pouco mais de 5 mil habitantes no interior, falece sem ter desfrutado da aposentadoria. Retornando do enterro, pensa: “terei que escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois […]. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada”.
Ernaux leva 25 anos para encontrar a linguagem mais adequada. Inesperadamente, a leitura da obra de Bourdieu — como os livros Os herdeiros, A reprodução, e sobretudo A distinção — servirá como meio de intelecção para compreender sua própria experiência. A autora falará em “prova pelo corpo” (l’épreuve par corps) das teses sobre dominação social elaboradas pelo sociólogo. Entendia que, por ser uma trânsfuga de classe, vivia os dilemas de um “habitus clivado”, experimentando uma alteridade com “o lugar” de origem, apesar de sua familiarização nele. Nesse caso, empregar as usuais convenções literárias seria exercer uma violência simbólica, adotando o ponto de vista dominante (burguês). Um outro estilo se impõe, e o encontra nas correspondências trocadas com sua mãe. Uma écriture plate — literalmente, uma “escrita plana” — ou “escrita neutra”, como preferiu a tradutora, atenta aos signos mais objetivos dos modos de agir, julgar, perceber, apreciar, praticados nesse mundo popular. Do que resultam cenas em que a descrição focaliza os gestos, objetos e enunciados verbais (palavras e expressões), esses últimos destacados entre aspas ou em itálico. O relato adquire forma fragmentada, a descrição prima sobre a narração, e há cortes explícitos entre conjuntos de parágrafos, que repassam episódios da vida do pai, alternando-os com reflexões metatextuais. É uma escolha ética, por se recusar a completar, embelezar, ou comentar além do preciso. Prudência para evitar o miserabilismo (o retrato do mundo popular pela falta) ou o populismo, que exagera na romantização e no heroísmo dos que vivem ali. [nota 2]
Pelos flashes de cenas e momentos significativos, apreendem-se diversos aspectos desse “lugar”. Primeiro, a predominância do trabalho braçal nas linhagens familiares: o trabalho rural do avô paterno, analfabeto, alugando seus serviços a fazendeiros; a avó paterna tecelã; a avó materna lavadeira e passadeira; as tias, empregadas domésticas em casas burguesas do centro da cidade; a entrada do pai no mundo do trabalho aos 12 anos como vaqueiro, interrompendo a escolarização; a mãe operária na fábrica de margarinas, e depois na de cordas, onde conheceu o marido. Depois, o modo de habitar (o chão batido, o banheiro externo, sem água encanada, o esvaziamento diário dos urinóis, as inundações e os ratos na morada da Vallée); os riscos de doenças (a morte da primogênita ainda criança por difteria); o cuidado com as roupas de vestir (uma para toda semana e outra aos domingos), e com as roupas de cama (a limpeza como atributo de dignidade, e objeto de vigilância dos vizinhos); além da importância do catolicismo no cotidiano (o risco da cruz sobre o pão; a peregrinação a Lisieux nas folgas; a indispensável extrema unção; a missa aos domingos, claro); o dialeto patoá; o acesso à propriedade, ainda que seja um pequeno comércio, como marco simbólico de inflexão em uma trajetória, ao olhar de parentes e amigos; a onipresença dos sentimentos de medo e vergonha. Enfim, o empenho em dar concretude à distância de classes.
Com isso, O lugar inaugura o que Ernaux chama de “auto-socio-biografia”, forma literária em que o íntimo é social, e o eu, “transpessoal”.[nota 3] Há singularidade na história do pai e dessa ruptura, mas há também rastros de uma experiência comum, compartilhada. A escrita precisa restituí-la para o entendimento do conflito. Não por acaso sua obra inspirará autores como Didier Eribon e Édouard Louis, eles próprios trânsfugas de classe, interessados numa literatura que, agindo sobre a realidade [nota 4], interroga constantemente o seu “lugar”.
NOTAS
[nota 1] Dominique Viart, “Filiations littéraires”. Ecritures contemporaines 2. Caen: Minard, 1999.
[nota 2] Ver o livro de Claude Grignon e Jean-Claude Passeron, Le savant et le populaire: Misérabilisme et populisme en sociologie et en littérature (Editora Seuil e Gallimard, 1989).
[nota 3] Annie Ernaux, “Vers un je transpersonnel”, R.I.T.M., n. 6, 1994.
[nota 4] Segundo Ricardo Lísias, no artigo Narrativas que agem sobre a realidade: Sobre a literatura francesa contemporânea, publicado em agosto de 2020 neste Pernambuco.