Resenha Gabriela Mistral Reproducao Biblioteca Nacional de Chile Wikimedia Commons junho.21

 

Artesã e alquimista, inventora de matérias e formas, construtora de uma física e uma mineralogia: assim o historiador da arte francês Henri Focillon descreve as mãos em seu ensaio Elogio da mão (1934). Essa parte do corpo que é paisagem, modela, pinta, escreve e explora elementos do imprevisível que está além do espírito. Extremidade que se coloca entre nós e o mundo para que possamos, enfim, criar as nossas ficções. Durante a leitura de A mulher forte e outros poemas, de Gabriela Mistral (1889-1957), a imagem do molde de sua mão, disponível no Museu Gabriela Mistral, em Vicuña (cidade de seu nascimento), tornou-se aparição constante junto à pergunta: o quanto as mãos carregam a história de uma mulher?

A compilação de poemas lançada no Brasil, em cuidadosa edição feita pela editora Pinard [nota 1], com tradução de Davis Diniz, é um trabalho que abarca poemas entre 1922 e 1967. Dessa maneira, o leitor entra em contato com vários eixos da obra de Mistral: a temática da maternidade, as cantigas de roda, religião, língua e linguagem, questões espaciais e de gênero, etc. “Escrever costuma me alegrar, sempre me suaviza o ânimo e me brinda um dia ingênuo, terno, infantil. É a sensação de haver estado por horas em minha pátria real, em meu costume, em meu desejo solto, em minha liberdade total”, afirma a escritora em fala proferida em Montevidéu e intitulada Como escrevo (1938).

Poesia que se torna extremidade mediadora entre o desejo e a liberdade, escrita que atravessa muitas ações no mundo: Mistral foi professora, consulesa chilena no Brasil, diplomata, a primeira e única mulher latino-americana a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Nasceu Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga. Seu primeiro contato com a língua foi por meio das canções de ninar de sua mãe e dos ensinamentos letrados de sua irmã. Também a cordilheira, o relevo montanhoso e o mar, estiveram presentes em seu imaginário desde cedo. Em Chile e a pedra (1943), texto publicado, originalmente, no jornal La Nación, Mistral diz que a pedra sustenta os pés dos chilenos e se pergunta: “Como escapamos dela (a pedra, a rocha) para criar a pátria?”

Aqui, volto à minha primeira pergunta e, relacionando com a obra da poeta chilena, compreendo que nos pés está uma pedra fundadora, a pátria e o relevo imponente. Dessa forma, o que resta para as mãos? Como visto em Focillon, o trabalho manual é, em última instância, o trabalho humano, a criação de humanidades. Em Lagar, livro publicado em 1954, encontra-se o poema Mãos de operários, no qual podemos observar uma espécie de percurso das mãos nos diversos modos de trabalho: “Duras mãos parecidas/ com moluscos ou traças;/ cor de húmus ou esturricadas/ com uma queimadura de salamandra,/ e tremendamente lindas/ se ergam frescas ou caíam cansadas”. E continua, em outra estrofe: “Eu as ouço trançando teares;/ em fornos as vejo abrasadas./ A bigorna as deixa entreabertas/ e o fardo de trigo apinhadas”.

O esforço manual para dar conta das ordens de trabalho, e também características que as mãos adquirem diante de cada objeto ou proposta de atividade, remete a uma ideia que nega automatização e presença de máquinas como responsáveis principais dos serviços. De certa maneira, Mãos de operários e o ensaio Elogio da mão são textos que dialogam quando partem do pressuposto de uma arte não mecanizada e distante, mas sim presente nos seus rastros “como uma queimadura de salamandra”. Ao longo de sua vida de ensino, Mistral acreditava em uma educação emancipadora, na qual a liberdade é motor funcional do processo educativo. Desse modo, pensar o trabalho operário por meio do poder das mãos como projeto político também se relaciona com uma maneira de ensino no gesto de entrega, fazendo com que o outro encontre nas suas próprias mãos movimentos diversos.

Nas cantigas de roda mistralianas, a constante imagem das mãos dadas que, segundo a pesquisadora e professora Carola Gabriela Sepúlveda Vásquez[nota 2], representa a união e o trabalho coletivo. De acordo com Vásquez, nos versos de roda, muitas mãos de mulheres aparecem, o que torna possível uma leitura de gênero. Em Ronda das cores, de 1924, um caleidoscópio azul, verde, vermelho e amarelo dá o tom do gira-gira: “Bailam uma atrás da outra,/ não se sabe qual melhor, e os vermelhos bailam tanto/ que se queimam em seu ardor”. Assim, em contínua comunhão com as mãos, Mistral construiu uma espécie de teia de saberes, palavras, geografias, métodos livres de se reconhecer em si mesma e no labor de moer o mundo com os seus pulsos vivos.

 

NOTAS

[nota 1] O livro foi publicado a partir de financiamento coletivo, através da plataforma Catarse, e contou com o apoio de 979 leitores.

[nota 2] Questões presentes no artigo Gabriela Mistral: Autoexílio, danças de roda, recados e experiências postas em circulação como forma de educação. Em Revista História da Educação (Online), 2021, volume 25; Santa Maria (RS), 2021. Disponível em seer.ufrgs.br/asphe/article/view/101202.