Gostaria de iniciar defendendo o uso acertado da arquitetura como um eixo central para a leitura da conjuntura política em Arquitetura de arestas: As esquerdas em tempos de periferização do mundo, tanto pela questão material da ideia de construir quanto pelo caráter simbólico que a construção ocupa no imaginário político. Os autores, Edemilson Paraná (à esquerda na imagem acima) e Gabriel Tupinambá, retomam o canteiro de obras como um instrumento de análise, inspirados pelo arquiteto Sérgio Ferro, reconhecendo a importância dos mutirões autogeridos e dos valores implicados em seu acúmulo de práticas – como a autonomia, a emancipação, o companheirismo etc. Do campo à cidade, muitos movimentos de esquerda obtiveram vitórias grandiosas à luz dos canteiros, sendo uma memória viva entre os militantes e parte fundamental da organização do que hoje se chama de luta.
Essa defesa inicial me pareceu necessária por uma questão trazida pelos próprios autores, a respeito de uma decaída da arquitetura como metáfora – ou como lugar de experimentação. É verdade que a construção se mantém atualmente impregnada por um campo semântico desenvolvimentista, dos espaços urbanos e especulativos do capital e que, conforme Paraná e Tupinambá, representa um contexto brasileiro marcado por um verdadeiro trauma construtivo: pensemos em Brasília, na Transamazônica; da transposição do Rio São Francisco a Belo Monte. Existem, de fato, precedentes que justificam a negação desse terreno, mas também ainda há o que se escavar (e disputar).
Outra questão que considero importante é que a queda da construção poderia implicar em uma defesa da desconstrução como estratégia – movimento que notei de forma sutil no primeiro capítulo, As três dimensões da tragédia da esquerda no século XXI. Nele, Paraná organiza a esquerda em três tipos de correntes e sugere, em seguida, a depuração de suas respectivas qualidades e defeitos. Essa proposta pode nos servir enquanto exercício generalizante da própria noção de esquerda, que os autores fazem questão de exercer e demarcar enquanto um terreno múltiplo e diverso – e daí a sua utilização no plural, “esquerdas”, no subtítulo. Mas esse tipo de movimento pressupõe a solução para uma questão específica, relativa a um problema de discordância. Ou seja, se entre as esquerdas não se chega a um consenso, busquemos formas de aglutiná-las, abrindo mão do que as diferencia. O que não podemos perder de vista é que talvez esse problema não queira necessariamente ser resolvido – ou, pelo menos, não nesses termos.
A visão afastada de que há uma dificuldade de consenso entre as esquerdas, expondo um “problema de unidade”, é contestada no capítulo seguinte, Da tragédia à comédia, em que Gabriel Tupinambá aprofunda a dimensão trágica do atual cenário político por meio da metáfora das “forças de gravitação”, revelando como o aprofundamento da crise organizativa, ao contrário do que muitos pensariam, diz respeito a uma esquerda já organizada. Como militante de um movimento popular e de massas, asseguro que a circulação de militantes entre as esquerdas é uma realidade antiga. Pessoas sempre mudaram de partidos em momentos de discordância política; “rachas” continuam acontecendo com o intuito de rearticular forças pautadas por ideologias, epistemologias ou práticas; “Partidos são organizações de totalidade”, como Sabrina Fernandes traz no prefácio da obra; movimentos sociais organizam a sociedade a partir de questões particulares, embora muitos também ocupem espaços relevantes dentro de partidos; fazemos congressos a fim de reavaliar a conjuntura e repensar métodos desde que há esquerda no mundo. Enfim, o que pode parecer um problema de unidade, é substância da própria ecologia de organizações das esquerdas brasileiras, sendo a sua diversidade e fragmentação um fato inevitável e, contraditoriamente, responsável por conectá-la. Somos, em separado, agentes de um mesmo ecossistema.
Mas, então, o que justificaria a tragédia atual? Considero a máxima de Alain Badiou, de que “todo fracasso é localizável em um ponto”, uma forma interessante de nos deslocar de uma visão viciada, pois este ponto em específico pode estar mais próximo de nós do que aponta a perspectiva hegemônica, e que Gabriel Tupinambá adianta ser uma categoria atravessadora de todas as questões anteriores: o sujeito. Grosso modo, buscamos maneiras de incluir pessoas neste canteiro a céu aberto chamado “esquerda”, de forma a transformá-las em sujeitos responsáveis por edificar as estruturas de nossas batalhas. Por isso, reconheço o esforço de Arquiteturas de arestas por estreitar práticas intelectuais e políticas, alertando sobre os problemas que permeiam a esquerda na teoria e na militância sem pressupor saídas genéricas. O sujeito, como um ponto de atrito, propõe um desafio complexo de consistência subjetiva, mas que pode ser o único agente capaz de alterar nossos métodos tradicionais de reprodução política.
A própria forma do livro questiona o exercício de aproximação e alcance de sínteses políticas coletivas, através de um diálogo em vaivém que não se furta de expor suas próprias contradições. Edemilson e Gabriel parecem muitas vezes discordar, ao passo que também convencem a si mesmos da gravidade dos caminhos que estamos seguindo: uma acentuada crise da democracia que implica, também, em reivindicações equivocadas das próprias esquerdas, de maneira que a abertura à crítica surge como parte do processo de especulação do pensamento político de revirar certas ruínas. Dou destaque para a síntese apresentada sobre alguns eventos contemporâneos, como o de Junho de 2013, fato polêmico e ainda mal absorvido por algumas partes da esquerda e que avalio importante trazer aqui: “(...) nossa proposta de abordar o ecossistema das esquerdas (...) pelos impasses e desenvolvimentos pós-2013 nos convida a repensar as tensões que eclodiram ali não apenas em termos de um embate entre a esquerda institucional, ou partidária, e a esquerda dita ‘desorganizada’ ou autônoma. Parte do trauma de Junho (...), talvez tenha sido o choque entre uma revolta já codificada pela fragmentação social característica do novo terreno social que habitamos”.
Pensar uma ecologia das esquerdas após processos sistemáticos de derrotas, pode ser uma oportunidade para construir outras unidades políticas que rompam com a própria necessidade de suturar a fragmentação. É dentro desse novo terreno social que construiremos novos sujeitos políticos – feitos de outras matérias a serem encontradas no futuro.