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Nomes são muito importantes para a escritora mexicana Fernanda Melchor, na medida em que alguns deles precisam ser deteriorados, apagados, como RGs simbólicos usurpados pela sociedade. No seu romance Temporada de furacões, lançado no Brasil em 2021 pela Editora Mundaréu, uma mulher é conhecida por toda uma comunidade como Bruxa e, após a morte (ou desaparecimento, morrer e desaparecer aqui são ações que não se distinguem bem), sua filha, que era chamada de Menina Bruxa, passa a ser apenas Bruxa, como irrevogável extensão materna. “Se algum dia teve outro nome, inscrito num papel mirrado pela passagem do tempo e pelos vermes, oculto talvez em um desses armários que a velha enchia de sacos e trapos imundos e mechas de cabelo arrancadas e ossos e restos de comida, se alguma vez chegou a ter um primeiro nome e sobrenome como o resto das pessoas do povoado, isso foi algo que ninguém nunca soube”, descreve o romance.

Procedimento semelhante em deteriorar/ apagar nomes encontramos no seu mais recente livro, Páradais (Mundaréu, 2022), com tradução de Heloisa Jahn (1947-2022). O título faz referência à forma tortuosa como ensinam aos trabalhadores de um condomínio de classe média alta a pronunciar de forma correta a gringuice Paradise a nomear o empreendimento de luxo ‒ “É Páradais que se diz, não Paradise; vamos ver, repita: Páradais. E o novo empregado teve vontade de responder Páradais é a puta que te pariu, bicha de merda folgada, mas não teve coragem de abrir a boca”. O novo empregado é Leopoldo García Chaparro, tratado ao longo do resto da narrativa apenas como Polo. Um adolescente empurrado pela mãe para ser contratado como jardineiro, mas que passa a maior parte do tempo fazendo trabalhos extras sem qualquer remuneração.

O que sabemos da vida de Polo é tão tortuoso quanto sua pronúncia da palavra Paradise. Sua existência consiste em reclamar por dormir no chão, tendo por travesseiro a camisa velha do avô morto, após ser obrigado a ceder a cama para a prima grávida (provavelmente de um filho seu). E enquanto não é explorado no condomínio, passa o dia tentando arrumar qualquer bebida barata e cigarros, tanto pela compulsão do vício como para ter algo que retarde seu retorno para casa, que divide com a mãe e a prima. Seu melhor amigo é um primo, que o abandona após se envolver com o narcotráfico. Sua companhia constante, nunca por afeto e, sim, porque é o que sobrou, é o que resta, é o que está ali do lado, é outro adolescente, Franco Andrade, referido na maior parte do tempo apenas como “gordo” (com minúsculas, para que o apelido sugira um rebaixamento ainda maior da pessoa).

O “gordo” é morador do Paradise, criado pelos avós e massacrado pelo tédio do conforto típico de uma classe parasita. Passa os dias em monólogos com Polo imaginando como transaria com a vizinha, num torpor masturbatório que, no entanto, não o resgata do pavor do pênis murcho na hora de uma possível prática. Ao notar que não teria chance alguma de realizar sua fantasia, decide da forma mais natural arquitetar um estupro e, para despistar o crime, só enxerga um caminho: por que não forjar um assalto e matar a vizinha e todo o resto da família dela? E por que não chamar Polo para que fique com os objetos roubados que serviriam de álibi?

Além do apagamento de nomes, há outros pontos que aproximam Páradais e Temporada de furacões. Trata-se de dois livros sobre feminicídios em que o crime, ou o que sobrou da vítima, nos é apresentado logo nas primeiras páginas. Em Temporada, somos guiados por um cortejo ao corpo putrefato da Bruxa a boiar no rio. Páradais começa como a crônica de uma morte anunciada, deixando claro a inevitabilidade do crime numa sociedade deteriorada pela misoginia: “Foi tudo culpa do gordo, era o que diria a eles. Foi tudo culpa de Franco Andrade e sua obsessão pela senhora Marián. Polo não fez mais que obedecer, acatar as ordens que ele dava. O gordo estava completamente louco por aquela mulher, Polo tinha percebido que havia semanas que o cara não falava em outra coisa, só em comê-la, fazê-la sua do jeito que fosse; a mesma ladainha de sempre, tipo disco riscado, olhar perdido e olhos vermelhos por causa do álcool e dedos besuntados de queijo ralado”.

Outro ponto a aproximar os dois romances reside numa tentativa de aproximação com algum elemento sobrenatural. Mas o que poderia ser um revival do realismo mágico latino-americano em Melchor ganha um contorno inusitado. Aqui as coisas ‒ e pessoas ‒ são assombradas apenas pelo fato de terem sido deixadas de lado ou esquecidas. A Bruxa e a Menina Bruxa parecem dotadas de poderes mágicos, porque são mulheres sozinhas e que sobreviveram justamente por conta dessa solidão.

Em Páradais, há uma casa abandonada, uma casa fantasma que serve como esconderijo para os adolescentes viciados da região. Há uma cena em especial em que Polo tem a impressão de ver algo vindo em sua direção na escuridão do imóvel: “Uma coisa pálida e macilenta surgiu de repente, arrastando-se velozmente pelo chão: uma mão esquelética, pensou Polo, os dedos horríveis encurvados como patas. Deu um grito na hora de acertá-la com um pontapé, com todas as suas forças”. Mas tratava-se apenas de outra imagem de solidão: “um enorme caranguejo extraviado que saiu voando na direção das árvores próximas, no mesmo instante em que o gordo soltava outra gargalhada e outra flatulência”.

Sempre que escrevo resenhas, procuro limitar ao máximo a tarefa de detalhar a história. Prefiro sempre olhar para o que fica ao redor das obras, o que as acompanha, o que delas sobra. Mas no caso de Páradais foi impossível não querer relatar os caminhos que Melchor escolheu para contar suas tragédias em que todo terror, toda solidão e todo crime são inevitáveis desde as primeiras linhas. Só me contenho, claro, a não deixar espaço para soltar qualquer pista do final surpreendente desse brilhante romance.