Ana Luisa Escorel vem construindo sem alarde, mas com força artística persuasiva, uma obra incomum na literatura brasileira das últimas décadas. Premida pela memória e com grande poder de fabulação, herdado com certeza da avó paterna, recria histórias de família com minuciosa atenção ao detalhe aparentemente insignificante, às circunstâncias sociais que ampliam o raio de alcance do vivido individual, tornando-o francamente compartilhável. Leveza e vivacidade dão um tom atilado à reminiscência, que deve muito à menina sensível e destemida que a escrita retoma.
Na ficção de estreia, O pai, a mãe e a filha (2010), lembranças da infância dialogam com expressivos desenhos da autora quando criança, num projeto editorial que coloca o leitor diante de um originalíssimo texto-instalação, não fosse a autora reconhecida designer. Acontecimentos, personagens, impressões, imagens, tudo converge – fruto da rigorosa economia textual – para a reconquista do tempo perdido, que se mostra então pleno de atualidade autoficcional.
Nos textos presentes em De tudo um pouco (2016), a memória estritamente familiar se alterna com o dia a dia do trabalho intelectual dos pais e colegas de ofício, reevocado com grande poder de síntese, a exemplo do admirável perfil de Rubem Braga (1913-1990) que abre o livro. Ou ao abordar o trânsito entre o campo e a cidade, num país ainda acentuadamente rural nas primeiras décadas do século XX, às voltas com a relação, não isenta de conflitos, entre os antigos proprietários de terra e os imigrantes que começavam a demandar visibilidade social.
O gosto pela reconstituição histórica por sua vez revela-se por inteiro em Dona Josefa (2019), à semelhança do resgate que Antonio Candido (1918-2017) fizera em Teresina etc. (1980), mas sem abrir mão do estofo ficcional que sustenta o relato e o especifica. Ficcionalização que Anel de vidro (2013) também assume ao narrar de distintos pontos de vista, o relacionamento adúltero do Chefe e sua assessora, ocasião para um mergulho dos quatro personagens envolvidos, os maridos e suas respectivas esposas, significativamente não nomeados, numa revisão do passado que é uma desabrida reflexão sobre as relações interpessoais no âmbito da família e do trabalho.
No livro lançado no final de 2022, O fastio do diabo, a escritora muda de rota em relação ao que vinha até então realizando, mas sem desprezar, antes intensificando de propósito, sua alta capacidade de fabulação. A meta agora é exprimir satiricamente, com virulência e desassombro, a tragédia que se abateu sobre o país nos últimos anos, causadora de inveja no próprio senhor das trevas, até então imbatível em promover situações do gênero. Na contramão da maioria dos livros que tratam do tema, em geral limitada ao viés realista, o texto alude de passagem ao Fausto, de Goethe, a Uma estação no inferno, de Rimbaud, e faz lembrar um outro precursor ilustre, o Machado de Assis de A Igreja do diabo, exímios em traçar as fronteiras, nem sempre claras, entre o bem e o mal, sem que se abandone, dessa vez, a função social e corretiva própria à sátira.
Entediado em seu reino, deprimido e sujeito à mesmice da cor vermelha e suas repetitivas variações, o diabo recebe a visita do Enviado, que lhe relata as condições de vida num país que, sem ser nomeado, remete ao Brasil, com seus mais de 500 anos de injustiças e atrocidades de todo tipo: grilagem de terras, natureza “aviltada”, exclusão de pretos e indígenas, “egoísmo e perversidade das camadas dominantes”, militares “ambiciosos, retrógrados e incultos” – cenário perfeito para a guerra constante de todos contra todos.
Diante dos fatos narrados com perversa satisfação pelo Enviado, o diabo vai aos poucos retomando a alegria e o antigo ânimo – seu projeto, enfim, se realizara à perfeição no país distante, onde as “coisas nunca fizeram muito sentido” –, para alívio dos médicos preocupados com sua depressão. A cada nova informação recebida aumenta a tensão textual ou o adensamento das questões propostas: o diálogo entre o diabo e o Enviado avança e vai abrindo caminho para o desnudamento severo, revestido de humor ácido, da origem das mazelas sociais que afligem o país em questão.
Trata-se, enfim, da dramatização do embate entre civilização e barbárie, em que o segundo termo parece sair sempre vitorioso, como na eleição do mandatário brasileiro “imbuído de propósitos infames, vulgares, valores baixos, próximo de grupos com nítida atuação delinquente”, medíocre oficial da reserva, pronto para servir de fantoche aos interesses econômicos e militares dos donos do poder, em tudo alheios às necessidades da população. A vitória do Mandatário das Trevas afinal se consuma: parte, sem data de volta, ao encontro de seu duplo, para um reino mais afeito a seus propósitos, sintetizado na cidade que fica embaixo dos braços abertos da estátua de seu maior rival, apesar disso a “mais violenta de toda a região”, no dizer do Enviado. A conclusão do texto permanece, pois, em aberto, a repercutir como um alerta persistente na memória do leitor.