Sidney Rocha Leopoldo Conrado

Não há inferno mais aterrorizante do que a memória — essa me parece uma das mensagens mais perturbadoras de O inferno das repetições (Iluminuras, 2023), a recém-lançada narrativa longa do escritor cearense Sidney Rocha, vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro de contos em 2012 (O destino das metáforas). Rocha, que foi o autor homenageado da Bienal do Livro de Pernambuco de 2019, é conhecido pela radicalidade da invenção verbal das suas ficções. Com O inferno das repetições não é diferente. Estão mantidos o experimentalismo, a busca alquímica pela palavra e o compromisso com o não-psicológico, o não-identitário e o não-local. O húmus da obra de Sidney é a palavra. É nela em que se encontram suas maiores qualidades, bem como suas possíveis fragilidades.

Embora O inferno das repetições não seja um livro de “entrada” em seu complexo universo ficcional — tal lugar ainda é ocupado pelo excelente Guerra de Ninguém (Iluminuras, 2016), um exemplo inescapável das possibilidades estéticas do conto brasileiro contemporâneo —, a obra é sem dúvidas seu romance mais acessível. Ele supera, em equilíbrio narrativo, a quadrilogia anterior do autor, composto por Sofia (2014), Fernanflor (2015), A estética da indiferença (2018) e Flashes (2020), todos publicados pela editora Iluminuras. Falar de “equilíbrio” não significa negar a qualidade das obras anteriores. Muito pelo contrário. Em cada uma delas, há páginas memoráveis de criatividade literária.

O inferno das repetições, por outro lado, introduz um elemento diferenciador em relação aos romances anteriores. Este elemento é uma maior presença da narratividade, aliada, também, a um painel sócio-histórico mais reconhecível. Assim, Sidney Rocha se dispõe, desta vez, a nos contar uma história, que gira em torno do narrador-protagonista do livro, Omar, e sua luta com a perda da memória e possíveis enfermidades psiquiátricas ou neurológicas. Se enredo há, ele é contado ao modo particular do autor, modo original e engenhoso, em especial na primeira das duas partes nas quais o livro se divide. Embora houvesse sempre, nos romances de Rocha, alegorizações e comentários sobre a vida social contemporânea, eles muitas vezes se escondiam sob a Terra-Sem-Rosto que perpassa o seu universo ficcional. Neste sentido, a obra romanesca de Sidney Rocha me recorda os não lugares de uma voz contemporânea cuja lembrança parece, atualmente, um tanto esquecida: o escritor gaúcho João Gilberto Noll.

Ao contrário de parte das obras do supracitado autor gaúcho, contudo, o escritor cearense não constrói suas Terras-Sem-Rosto na impossibilidade das personagens vivenciarem qualquer dimensão da ideia de experiência, seja esta experiência interior, ou social (no caso de Noll, penso em romances como Hotel Atlântico, ou Harmada, por exemplo). Em Sidney Rocha, há tanto sobreposto em seus romances e contos — camadas de citações, jogos verbais, alegorias, chistes, colagens, Faulkner-Cortázar e os surrealistas e o realismo mágico —, que uma reflexão sobre experiência existe, porém localizada menos no plano narrativo, e muito mais em um plano conceitual e linguístico. Os romances de Sidney Rocha são o que, na pintura, o expressionismo abstrato teria sido, se os quadros de Jackson Pollock tivessem senso de humor.

Rocha é um herdeiro das mais arrojadas experimentações do romance Modernista, tanto na literatura brasileira quanto na estrangeira. Isto estabelece um contraste significativo com o nosso romance atual, que tem dialogado muito mais com o realismo do século XIX ou com os jogos verbais do pós-modernismo dos anos 70 e 80. Para além das referências que formam a literatura de Rocha, há também nela um comentário insatisfeito, que se materializa justamente em projeto estético, com o panorama da ficção brasileira contemporânea. Ao negar o senso de lugar, o respeito à verossimilhança histórica; ao recusar a representação de identidades coletivas, sejam estas regionais, de raça ou de gênero, a obra do escritor cearense se posiciona orgulhosamente na contramão do tempo presente.

Estar na contramão, contudo, não é um valor relevante por si só. O “não” ao contemporâneo como valor pop é a mais eficaz falácia que o ressentimento e o reacionarismo estabeleceram para ocultar o seu próprio fracasso existencial. É preciso, portanto, avaliar a fatura do projeto em questão. Sidney Rocha, sem dúvidas, está longe dos bosques dos medíocres ressentidos, pois a fatura da obra do autor de O inferno das repetições, já extensa, é sim bastante positiva, embora ela possa alienar uma parte do público leitor que está em busca de identidades, debates políticos e realismos mais palpáveis.

Como disse anteriormente, estar no mundo, mudar e ser mudado pelo mundo, conversar no mundo, odiar e amar no mundo, tudo isto — que são dimensões esperadas de uma narrativa, especialmente de um romance — se encontra nos romances de Sidney Rocha, principalmente no jogo da linguagem. O inferno das repetições, no entanto, muda este jogo, porque decide fazer uma concessão parcial às dimensões sociais que tantas vezes associamos à maquinaria dos romances. Neste sentido, há uma bem-vinda aproximação da escrita do romance com os seus contos, local literário no qual eu identifico o melhor da escrita do autor. O inferno das repetições tem coisas mais concretas a dizer sobre a experiência de viver; igualmente, alguns dos seus personagens possuem uma vida própria, socialmente inscrita em um mundo com mais rosto do que os romances anteriores. Isto é surpreendente para quem, como eu, acompanha a trajetória do autor há quase duas décadas. Surpreendente e satisfatório.

E que história O inferno das repetições nos conta? A do labirinto da memória. Aqui, também, o reconhecível do romance. Neste sentido, me aproprio, sem ironia, da palavra “repetição”, contida no título do livro, que eu metamorfoseio em “tradição”. Sim, porque Rocha retoma um dos mais importantes temas do romance, o da reflexão sobre como o tempo histórico transforma as vidas a serem narradas. E tal reflexão acontece com frequência utilizando a memória como fio condutor. Perspectiva, singularidade, ambiguidade: três características tão apreciadas pelo romance têm na memória um instrumento de desenvolvimento extremamente eficaz. O inferno das repetições é, em nossa literatura, uma das recentes atualizações deste mecanismo, atualização complexa e muito bem realizada por Sidney Rocha.

Retomando Cromane, o país imaginário dos romances anteriores de Rocha, acompanhamos os vaivéns da memória de Omar, o narrador do livro. Se a memória é um dos grandes temas do livro, Omar é um arquétipo de personagem consagrado na história da literatura brasileira. Ele é o Memorialista, um homem ou mulher que, com frequência doente de corpo e espírito, precisa repetir os infernos do passado a fim de entender os impasses do seu presente. De Dom Casmurro, de Machado de Assis, passando por São Bernardo, de Graciliano Ramos, Leite Derramado, de Chico Buarque e Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, o romance brasileiro é a história do acerto de contas de uma subjetividade problemática com o seu próprio passado.

Em uma condução não linear dos fatos, condizente com a errância da memória, acompanhamos momentos-chave de décadas da existência de Omar, da infância à velhice. O que, porém, este narrador procura? A qual pergunta ele deseja responder? Se na tradição dos romances dos Memorialistas há a recorrência do trauma de suas formações como indivíduos, trauma este que necessita ser contado e contado e contado outra vez, O inferno das repetições não nos apresenta uma relação de causa e efeito a respeito da memória. Na verdade, há quase um determinismo do tempo: somos seres compostos por palavras e desenredos. Logo, parece afirmar o romance, estamos condenados a narrar o ciclo vicioso das circunstâncias que formaram nossa vida, gostemos ou não, haja fatos novos, ou não. O pessimismo, contrabandeado pela elegância do estilo de Rocha e por suas ironias, emerge após finalizarmos a leitura de O inferno das repetições: não há garantia de sabedoria, nem de aprendizado, ou de redenção pessoal nas páginas que acabamos de ler. É o que, em certo momento, diz Omar: “Devaneio? Serei mesmo eu, que a vida toda fiz pouco caso do passado, ele não define tanto assim as pessoas, que penso o contrário hoje? Que novidade é essa? Ando em busca de péssimas justificativas para não ser quem sou? O tempo devasta qualquer passado”.

Em seu mais coeso e bem-acabado romance, Sidney Rocha nos propõe uma fábula sobre memória e tempo, que narra seus objetos de reflexão por dentro da linguagem que a ambos estabelece. Embora não seja ainda a obra com equilíbrio de qualidades que busco em um romance, qualidades que, reitero, estão afirmadas nos seus melhores contos, O inferno das repetições é um passo importante na consolidação de uma obra singular na literatura contemporânea.